sexta-feira, 23 de novembro de 2007




A dimensão poética e a cidade

A cidade, se olhada a fundo e ao largo, torna-se objeto de admiração, satisfação pessoal, ideal de nossas vidas. Olhemos os traçados das ruas, seus aspectos paisagísticos, sua arquitetura com seus recados históricos, seres humanos e animais. Depois, para ver melhor, é importante imergir nos meandros do imaginário popular. Navegar é preciso para romper com o primarismo das pedras amontoadas e a natureza em estado bruto: árvores, rios, morros, céu e gente, zanzando de um lado ao outro, tudo matéria pura e simples. Subjetivar, embarcar na dimensão poética das coisas, ver além do que a vista alcança, abarcar o mundo. A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais!
Algumas pessoas – singulares - se destacam pela originalidade, jeito-de-ser único, anormal, além da banalidade, da mesmice. Outras – plurais - materializam os personagens dos ficcionistas e reafirmam a velha máxima de que a vida imita a arte e a arte imita a vida. O grande mentecapto, personagem de Fernando Sabino e Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, passeiam de mãos dadas pelos altos e baixos de Cataguases. Tenho dito.
Redigi os dois parágrafos acima a partir de uma crônica que publiquei há tempos em um jornal – O Painel. Não me lembro em qual data. Sei que no texto tratei da existência de três personagens, dos quais volto a falar neste blog. Omito os nomes, mas afianço: trata-se de gente que faz a diferença, figuras instigantes, merecedoras de muitas palavras. Temos muitas outras, dignas de um foco narrativo, mas hoje viajo, novamente, na companhia dos meus três conhecidos amigos. Embarque comigo.
A primeiro é onipresente, ubíquo. Muito embora não se tenha notícia de que materialize nenhuma divindade, consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo. Num sábado à noite foi visto numa quermese, a bordo do ônibus que levava dançantes e caçadores de aventuras amorosas para um baile de forró num município vizinho e também mediando uma barulhenta discussão política numa roda de carroceiros. Alguns exagerados ainda dão conta de que ele tenha sido visto na capela mortuária, apresentando suas condolências a uma família enlutada. Tinha aparência carregada, de dor sincera, conformando-se com o ambiente de perda do ente querido. Mas isso não é crível. Embora seja homem, é conhecido por seu apelido no feminino, – Toda. Figurinha fácil.
A segunda personagem é misteriosa e pode ser encontrada a qualquer momento em Cataguases. Basta esquecer os preconceitos de classe, cor, gênero e raça, como convém ao bom cidadão, e passar em visita aos botecos - nem tão ordinários assim - que circundam o centro da urbe. Não precisa ir muito longe, procure nas imediações da Praça Santa Rita e Rui Barbosa. Não a encontrando, desça pela ponte velha e dobre no sentido de Leopoldina. Não ande muito, pois ela nunca se embrenha pelo asfalto. Seu roteiro inclui, no máximo, uma passada no último estabelecimento da rua de pedras que bem pode ser um empório. Se, ainda assim, não localizá-la, tome o coletivo e desembarque no bairro Beira Rio. Volte experimentando, entre nos bares, espie. É uma mulher e permanece por duas, três, quatro e, se for conveniente, por mais horas sentada, bebendo cerveja e destilando discretos sorrisos aos passantes. É magra, pernas longilíneas, cabelos curtos, melindrosos, mãos de muitos anéis, usa sandálias bem ventiladas, bolsa e calça jeans que só chegam até as finas canelas. Nunca tem pressa pra nada nessa vida. Alto lá, não pense que a nossa “Papoula da Tarde” seja uma desclasificada. Não, ela trabalha de carteira assinada, paga IPTU, convive no dia-a-dia com gregos, troianos e italianos, vive bem integrada na comunidade e... nada deve a ninguém. Mas é nos ambientes dos bares que se reconhece por inteira: interioriza-se, encontra-se na sua subjetividade, consegue purgar os seus percalços afetivos, extrair os dolorosos calos do desamor, organizar seus entreveros mentais. Destaca-se no cenário e, inevitavelmente, atrai os carentes e perdidos, dos quais ouve os dramas com a atenção e paciência devidas – ou indevidas. Complacente, esforça-se por ser cordata com a argumentação de todos, preservando a harmonia do ambiente. Sofreu muito com a perda de um de seus diletos amigos, o professor Matosinho, a quem pedia conselhos para depois desmanchar-se num choro pungente. Assim, graças às sábias palavras do Mestre, muitas vezes, livrou-se de suas dores da alma, desabafou, purgou seus suplícios, reconciliou-se consigo mesma.
Tive notícias de que a terceira figura de que tratei no Painel mudou-se de Cataguases. Fiquei um tanto assim confuso com essa informação, até porque eu tinha lá as minhas dúvidas se ela realmente existia ou fora produto da minha imaginação. Se não existiu, como é que pode ter se transferido para outro lugar? Trata-se de um simples pescador que, no descer do sol, ia rio acima na busca dos peixes. Homem de corpo musculoso e negritude infinita, subia remando até uma certa Ilha do Horizonte e depois descia nas Águas da Meia-Noite, estacionando seu barco nas imediações do bairro Leonardo, nas pedras existentes no meio do Pomba. Ali, no virar do calendário, punha-se de pé e com as mãos em conchas no entorno da boca. Olhava para o céu e uivava, uivava, uivava, feito um lobo. Seu uivo, associado ao barulho intenso da cachoeira, produzia uma estranha magia, atraindo os peixes que pululavam à flor d´água, em reboliço, atracando-se uns aos outros. Era o momento de lançar a rede e encher a embarcação. Alguns jovens mais imaginativos que permaneciam até àquelas horas, observando o movimento do sobe-e-desce no bairro, diziam que o homem, no momento do ritual, passava por uma espécie de metamorfose: “Seu corpo ficava cheio de pelos, como um lobisomem!“ No entanto essa parte da história não pode ser confirmada, já que o nosso personagem só podia ser visto à distância e o escuro da noite não permitiria a observação humana dos detalhes. Por outro lado, é corrente a informação de que, durante o espetáculo, as nuvens deslocavam-se em movimentos circulares, cobrindo quase que totalmente a lua cheia, enegrecendo o ambiente. Uma força misteriosa agindo na natureza!
O real e o fantástico podem perfeitamente conviver em harmonia compondo a nossa existência. É preciso buscar também no campo imaterial o que a objetividade não nos oferece como possibilidade de vida. Nesse sentido, vale tudo no exercício da busca da felicidade. Não se realizam em sua humanidade os seres feito do frio barro, da crua materialidade, incapaz de produzir emoções, alegrias, Outros Sentimentos. Ademais, o concreto e o abstrato se entrecruzam e se completam. Nas ruas andam pessoas crentes, movidas pela fé no que não conseguem tocar, mensurar; nas igrejas reza-se encaminhando pedidos aos santos das causas impossíveis; na solidão das casas moram seres humanos que sonham e alimentam desejos na dureza do correr dos dias.
A vida levada objetivamente, no limite dos cinco sentidos, perde a poesia, afunda-se no fastio, na aridez dos corpos. Não revela seu encantamento.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Dois casos do Futebol de Cataguases

Deixa comigo!

Jogo entre o Bairro Jardim e o time do Eurides, o Brasil, no campo do Flamengo, em Cataguases, no início da década de 70. Partida quentíssima! O juiz, José Cabrita, correndo ao lado, estica os ouvidos para captar o que perguntava o maestro Bugarim, meio campo do Bairro Jardim:
Seu José, por favor, quanto tempo falta pra terminar o jogo?
Artur estava preocupado com aquele zero a zero e buscava a informação para pensar nova estratégia para vencer o jogo. Percebeu que tinha um aliado na sua empreitada. Ainda na corrida, olhando o relógio, Cabrita respondeu:
- Faltam quinze, joga na área que eu dou pênalti.

Desentendido

Dr. Astolfo, truculento delegado da cidade na década de 1950, encontra Jaú Feijão zanzando numa quebrada, madrugada de sábado, nas imediações do bairro Leonardo.
Blitz. Jaú arrochado na geral, mãos na nuca, se identifica como jogador de bola de uma boa equipe da cidade na época. Busca uma saída daquela situação constrangedora e, simpático, lembra ao policial de seu perfil de jogador popular, muito admirado pelos torcedores:
- O senhor não me conhece, Doutor? Sou o Jaú...o Jaú Feijão, lateral do Operário.
- Não lhe conheço nem quero conhecer, seu boçal! Retruca o delegado
Jaú com a sua habitual mansidão e sem entender o significado do qualificativo, agradece:
-Boçal? Bondade sua, doutor, bondade sua.