segunda-feira, 24 de março de 2008

Procurando o Moreninho

“O chicote é a figura da deformidade
e o cativeiro deforma o homem. “ ( * )

Na última sexta-feira, dia 21, estivemos comemorando o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. A data foi instituida pela ONU devido ao Massacre de Sharpeville, na África do Sul, em 21 de Março de 1960. Veio daí a idéia dessa crônica.
Se a protagonista do fato que vou contar morasse na Bahia, certamente, seriam outras as minhas palavras; possivelmente estaria aqui escrevendo sobre música, dança e alegria.. Como diria Caetano: “Negro é lindo!”. Os baianos saíram na frente, assumindo a sua negritude. Vão, aos poucos, consumando uma nova realidade social, livre do preconceito e do racismo. Extinguem assim a idéia de “Cor da Alma”.
Fizeram mais: assumiram – corretamente - a cultura como um valor libertário. Cantar, rir e dançar, libertam e excluem qualquer necessidade de turra, cara feia ou violência. Na Bahia, as notas musicais que constroem melodias e harmonias embalam também o movimento do corpo; a liberdade é a consequência natural do desprendimento, do bom humor e bem-estar coletivo. Ser racista e preconceituoso na terra de Painho e Mainha é feio que dói!
Mas a nossa personagem não pensa assim. Carrega na carcaça e no imaginário o peso dos quase quatrocentos anos do jugo da escravidão, essa prática abjeta que permeou a vida brasileira ao longo do período colonial, avançando até o final do império português.
Não sei o nome de nossa artista, nunca a tinha visto. Estive perto dela apenas alguns minutos, tempo suficiente para colher o material com o qual alinhavo este texto. Mas já sei que se trata de uma alma ingênua, vítima da nossa história de opressão. Uma alma gestada sob o signo da dominação branca, que só consegue reconhecer a presença de Deus na alvura das coisas, como se Deus tivesse cor, como se Deus fosse o protótipo ou representante dos homens que dominam.
O que narro a seguir, servirá de exemplo prático para ilustrar muito do que expus até aqui, abusando de sua paciência.
Duas horas da tarde na tórrida Cataguases. Rita Bento, militante do Movimento Negro, e eu, aproveitávamos a sombra num dos bancos de Santa Rita de Cassia. Falávamos de amenidades, das muitas mentiras e algumas relativas verdades da política, quando fomos abordados por uma “mulata”, ela mesma, a nossa artista:
- Eu estou procurando o Dagoberto... é um cara que trabalha com fulano de tal, é segurança...
Rita Bento ainda franzia o sobrolho na tentativa de buscar na memória a figura pretendida pela mulher, quando ouviu:
- É um moreninho que nem você, moça!
Aguerrida militante, digna de Zumbi dos Palmares, percebendo a fragilidade daquela alma, Rita redarguiu, questionando com certa dureza:
- Epa, e quem é que lhe falou que eu sou moreninha? Eu sou é negra, minha filha!
Mas nossa personagem, compassiva, não entendeu o discurso da lutadora:
- Não fale assim, você não é negra!
- É claro que eu sou negra, olha aqui a cor da minha pele, você tem problema de visão? Sou negra com muito orgulho. N E G R A!, e do Movimento... das bonitas, vê!? Se você não sabe, negros somos todos nós que viemos da África.
A “mulata” não entendeu muito a lição de consciência étnica da Rita Bento e ao tentar se retratar, piorou ainda mais a situação de constrangimento:
- É mesmo, né gente?, tem muito branco que não come no prato que o negro come!
Rita, já escaldada com a visão preconceituosa das pessoas e com consciência da realidade histórica que vivemos, relevou com humor:
- Procura a sua informação no Almoxarifado da Prefeitura. Fica no final da avenida... na boca do Léo. Lá eles conhecem todo mundo, inclusive os moreninhos!

* Trecho do discurso de Basílio Machado, proferido em 1885, para homenagear José Bonifácio.


segunda-feira, 17 de março de 2008

Resenha Luiz Lopez


(O artista plástico e professor Luiz Lopez apresenta a sua visão sobre o meu livro Ilha do Horizonte, a ser lançado em julho.)

O Pescador de Pérolas

Em “Ilha do Horizonte”, novo livro de Vanderlei Pequeno, o autor pesca crônicas no horizonte da memória, plenas de humor, saudosismo, lirismo, paixão, dor, política, crítica social, empatia com os desvalidos e com os antigos craques da bola; enfim, histórias que constroem uma rede de ocorrências locais dessa ilha, na verdade, microcosmo, chamada Cataguases, a qual povoa seu horizonte de escritor, e que nos permite uma analogia panorâmica com o Brasil.
Que cidade não teve ou tem seus personagens pitorescos que moram no imaginário de seus habitantes? Que povoado não guarda suas histórias engraçadas, ou comoventes, seus tipos, os quais desafiam as normas estabelecidas? Quem nunca ouviu falar dos “boleiros”, hoje esquecidos e abandonados, a driblar sua vida miúda, num mundo cada vez mais desumanizado?
Pois Vanderlei Pequeno, cronista cataguasense, apanha essas e outras prosas, resgatando a cor local, deixando-nos o testemunho de um tempo, de situações e pessoas comuns, para nosso conhecimento e deleite. Dono de uma linguagem fluente, simples como a água do rio que circunda sua ilha, nem por isso simplista; porém, sem descuidar dos diálogos intertextuais, com referências a filósofos, educadores, músicos, escritores e poetas que enriquecem sua escrita, como se o autor nos fizesse um convite para navegarmos também em outras águas – no oceano das obras dos mestres, sempre prontas a alargar nossa visão de mundo.
O escritor está continuamente guiando-nos em sua pescaria de casos na Ilha do Horizonte. E podem estar certos de que, na companhia desse pescador-de-pérolas, a rede de acontecimentos e situações estará sempre cheia, deixando viva na nossa memória a imagem dos que teceram e tecem seus dias nesse emaranhado de fios-fatos que forma a complexa cadeia de nossas vidas.