sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Catarse e testemunho existencial - Ronaldo Cagiano

Das muitas leituras que podemos fazer de uma trajetória de vida ou de uma obra literária, a que melhor pode refletir o homem ou definir o escritor é o sentimento de indignação. Refiro-me àquele que nasce do espírito e da consciência de quem, ao olhar o mundo, é capaz de extrair dessa mirada a sua permanente visão crítica, como farol para seu posicionamento diante das questões que afetam o homem, o mundo e as instituições.
A vida e a literatura de Emanuel Medeiros Vieira, autor de cerca de duas dezenas de livros, é ressonância de sua imensa preocupação com o homem e sua transitoriedade. No conto, na poesia, no romance, na crônica ou nas intervenções jornalísticas, percebe-se um escritor mergulhado profundamente nas questões cruciais que dizem respeito ao ser e seu lugar no mundo.
Herdeiro de uma tradição literária humanista, Emanuel vem construindo sua bibliografia dentro de uma perspectiva crítico-filsófica em que a problemática existencial é tema recorrente em sua obra. A passagem do tempo, a morte, o sucateamento dos valores éticos e morais, o enterro das utopias, a incomunicabilidade do homem contemporâneo na sociedade globalizada (seduzido pelos fetiches do deus-mercado) e seu consequente isolamento num tempo de coisificação e etiqueta vêm sendo mapeadas pelo autor desde seus primeiros trabalhos poéticos e ficcionais.
Ainda há pouco, Emanuel experimentou uma prova de fogo em sua caminhada. Vitimado por uma infecção que afetou todo seu metabolismo, viveu seu apartheid psicológico num leito de hospital por algumas semanas. Nesse período, considerado um divisor de águas em sua vida, escreveu um obra tão pungente quanto arrebatadora, em que passou em revista à sua trajetória pessoal e intelectual, legando um testemunho literário emocionante, inventário e balanço dessa terrível travessia. Cerrado desterro (Ed. Thesaurus, DF, 20008), primeiro volume de uma obra de cunho memorialístico e intimista, mas sem o vezo da autocomiseração ou sentimentalismo, abriga densa e (in)tensa indagação existencial. Vieira nos dá a conhecer a sua terrível experiência da enfermidade, ao mesmo tempo em que faz um meticuloso e introspectivo encontro de contas com o passado (tanto o pessoal como o político). Nesse texto candente, rememora suas lutas, discute temas hoje tão negligenciados na literatura e na arte, percorre os tempos difíceis da ditadura (quando colocou sua palavra a serviço da luta e da esperança), relembra os amigos, os livros de cabeceira, os autores que influenciaram sua formação moral, espiritual e filosófica e as relações afetivas e culturais. Nesse trânsito entre o passado e o presente, flertando com a realidade, a invenção e a memória, expõe a coerência dos propósitos que não morrem, sem envergonhar-se das ilusões que ainda alimentam sua alma, porque, apesar das contradições e dicotomias da era moderna, ainda crê na vida e faz da literatura sua catarse, seu salto dialético, sua ponte sobre os escombros da própria civilização.
Todo o trabalho de Emanuel, desde seus primórdios como estudante em Florianópolis ou Porto Alegre até radicar-se em Brasília, onde desde 1979 exerce a assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, é um testemunho de seu inesgotável “sentimento do mundo”. Em seus livros, o poema ou a narrativa não se esgotam num simples projeto editorial ou mercadológico, é uma confissão íntima, uma declaração e uma confiança no trabalho criativo como êmulo de sua razão de ser e viver. Como Alfredo Bosi, que entende que “só a arte é capaz de tirar o homem de sua total imbecilidade”, ou Fernando Pessoa, para quem “toda literatura é sempre uma expedição à verdade”, Emanuel concebe seus livros como instrumento para se entender o mundo, para vencer a solidão, para compreender nossas fraquezas e limitações e, acima de tudo, para ir fundo, cada vez mais fundo, doa o que doer – e a quem doer – naquilo que incomoda, avilta, humilha e nos apequena, seja na vida, na literatura, na política ou na história das instituições. Seus livros, como um rio, como um mosaico, são vertentes e repositório de seu fluxo onírico, são expansões de seu aguçado senso de observação, são contundentes e vulcânicas extrapolações de um inconsciente que vasculha os escuros da alma, os infernos da vida e as mazelas da morte.
Com sua prosa visceralmente inquieta (e inquietante), Medeiros Vieira deixa uma valiosa contribuição, como autor e como homem, à inteligência e à bibliografia nacional, embora injustamente negligenciado pela lógica editorial do hegemônico e monopolista eixo Rio-SP. Seus livros são um repositório de idéias, sonhos, posições e preocupações com o nosso destino, o que mais uma vez se confirma no recém-lançado romance Olhos azuis, ao sul do efêmero (Ed. Thesaurus, DF, 2009), quando retoma a sua inesgotável capacidade ficcional e fabulatória, sem deixar de lado nas suas histórias o viés que sempre deve marcar a passagem do homem pela Terra, que é jamais perder sua disposição para se indignar diante das injustiças, do caos, do fracasso das ideologias e da derrocada dos valores. Como Borges, o autor catarinense também entende que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”

(*) Autor de Canção dentro da noite (poesia) e Dezembro indigesto (contos), dentre outros. Vive em São Paulo.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Mediocridade e degradação da atividade política (Emanuel Medeiros Vieira, de Brasília)

O filósofo vienense Ludwig Wittgenstein (1889-1951 ) afirmava: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”
Onde quero chegar?
É de percepção solar a degradação das instâncias de poder no Brasil. E também a mediocrização e a degradação da atividade política.
Quem está , como eu, há muito tempo em casas políticas (37 anos!), percebe que, além da desagregação dos valores, ocorre também a degradação da linguagem.
Quero dizer: o nível dos parlamentares e o padrão dos discursos (sem qualquer ranço de nostalgia), piorou muito.
Octávio Paz dizia que uma degradação de uma nação começava pela degradação de sua linguagem.
Independente de se concordar com suas posições ou não, percebia-se o nível de pronunciamentos de, um Aliomar Balleiro, de um Adauto Lúcio Cardoso e, posteriormente, de um Tancredo Neves, de um Ulysses Guimarães e de um Darcy Ribeiro. Não citei muitos.
Muitas das colunas políticas da mídia impressa refletem isso. Várias são de uma mediocridade e de uma futilidade enormes.
Deputado tal que jantou com outro líder, um parlamentar que foi visto conversando com o seu líder. A linguagem “neutra’ é uma falácia. Ela serve a diversos interesses, e nunca é neutra.
Quero dizer: a mediocrização contaminou as próprias colunas, que deixam de contemplar análises consistentes (é claro, não estou pedindo teses acadêmicas), para se tornaram espaços para intrigas, fofocas, ou irradiarem nas entrelinhas outros interesses. Lembrem-se de algumas colunas.
Teria sido claro?

Informa-se que professores da Espanha e de outros países estão desistindo da profissão. Sentem-se mais ofendidos pelo desinteresse dos alunos do que pela sua ignorância.
O conhecimento é um caminho longo e complexo. Não tem milagre.
Ele perde em nossa sociedade da fragmentação, da pressa, do utilitarismo, do “quero já e agora”, para a busca do prazer absoluto e instantâneo.
Haveria uma razão cultural pela queda do prazer gerado pela leitura. Lógico, o reino soberano é o da imagem, muitas mídias são oferecidas, tudo ficou mais rápido, complexo e esfacelado. E predomina a cultura do narcisismo, além de uma enorme preguiça mental.
E o que me parece mais grave: há uma crescente indiferença pelo sofrimento humano. Dos outros.
Nossos contemporâneos estariam imersos em bobagens sem valores, em futilidades, na obsessão pela beleza, pela magreza, pela juventude eterna, dominados pela infantilização mental? A vida estaria virando um deserto de valores E como se exerce a cidadania? Um espaço seriam os partidos
políticos. Mas no Brasil eles viraram clubes fisiológicos.
Está havendo uma peemedebização total do sistema político (no PT, DEM, PSDB e satélites).
(Emanuel Medeiros Vieira)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sobre a lei 001/2009

Empilhamento de gente

Zeca Junqueira

Muito oportuna a nota oficial da Comissão Executiva Municipal do PT de Cataguases alertando sobre as mudanças propostas - 17 artigos - pelo vereador Eduardo Schelb (PSC) para o Plano Diretor da cidade que estão para ser votadas na Câmara. É preciso entender que mudar, nesse caso, pode significar deformar; e irremediavelmente.
Na poligonal que demarca a área de tombamento histórico do Centro de Cataguases só se pode erguer prédios, como certamente pretendem as construtoras, com a chancela do IPHAN, cujo poder de arbitragem o projeto de Schelb quer diminuir. Mesmo assim, dada a seriedade do que pode vir por aí, vale afirmar que nem mesmo ao IPHAN (ou à Prefeitura) deve caber a última palavra sobre o assunto. É a população, principalmente a que mora no Centro, que precisa bater o martelo. As cidades devem ser projetadas em função do bem-estar de seus habitantes e não o contrário. Portanto, somos nós que moramos nessa área da Cataguases que devemos deter, em última análise, a soberania da decisão.
A pergunta a ser feita ao (s) vereador (es) que apóia (m) o projeto e às construtoras que querem levá-lo à cabo é esta: exatamente em quê o Centro da cidade se beneficia com a construção de prédios de apartamentos em seu perímetro? Verticalizar Cataguases é bom pra quem? Essas construções gerariam empregos? Sub-empregos temporários, numa relação custo / benefício prejudicial à coletividade.
A resposta final é simples e não requer qualquer respaldo técnico para ser fundamentada: quem fatura são apenas as construtoras. Portanto, o que temos é especulação imobiliária.
Explico mais: todo crescimento vertical é falso, é inchaço, só se pode expandir de fato expandindo-se a base, logo, horizontalmente. Se começarmos a colocar caixas no chão de uma sala, por exemplo, em determinado momento não teremos mais espaço para acomodá-las. Mas, se quisermos continuar botando caixas, vamos passar a empilhá-las umas sobre as outras. Mais adiante, se quisermos tirar tudo o que se encontra dentro dessas caixas e colocar no chão da sala, não vai caber. Vamos precisar de mais espaço, mais chão. Trocando para a verticalização do Centro da cidade, é a mesma coisa. Vamos ter empilhamento de gente, mais carros e motos nas ruas (que já temos demais), mais esgoto, mais aparelhos de ar condicionado soltando gases poluentes, em resumo, teremos um forte impacto ambiental concentrado, uma vez que a base permanecerá do mesmo tamanho.
Desta forma, considerando-se que Cataguases já apresenta problemas graves na área habitacional, com gente morando em morros favelizados e em prédios (olha a especulação imobiliária!) construídos até dentro do Rio Pomba, pergunto: por que essas construtoras não acenam com proposta de construir casas populares, aproveitando os grandes espaços ociosos na periferia da cidade? Não topam, é lógico, porque isso não dá dinheiro.
Defronte ao local onde moro, à Rua Alferes Henriques de Azevedo, há um terreno vazio e ao lado vê-se tristemente os escombros da casa onde morou a família Carneiro, a “Casa da Rua Alferes” de nossos líricos cronistas. Dizem que nessa área subirão dois prédios. Nós, moradores locais, ganharemos o quê com isso? Melhor seria a Prefeitura recuperar a velha casa, transformando-a num centro cultural, com oficinas de arte, como já foi proposto, e ao lado, no outro terreno, construir uma bela quadra de footsal para a molecada pobre das imediações praticar esporte. Não seria mais indicado, essa não seria uma opção mais cidadã, portanto, mais progressista?
Certamente, nossos vereadores precisam abrir a discussão dessas construções no Centro da cidade para a população, convocando-a ao debate, ouvindo arquitetos, urbanistas e especialistas em meio ambiente. Se não procederem assim, estarão correndo sério risco de desfigurarem a cidade com um equivocado sim que poderá deixar uma marca indelével em seus mandatos e lhes ser cobrado implacavelmente por gerações futuras.
A hora é de reflexão. Não vamos maltratar Cataguases por dinheiro.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Aniversário da Ponte Velha

(Discurso proferido na Sessão Legislativa da Câmara Municipal de Cataguqases, de 23.06.2009.)


Excelentíssimo senhor presidente, caros companheiros de câmara, senhores e senhoras presentes:

A nossa ponte metálica, a tão conhecida “Ponte Velha”, foi entregue à população em 1915 e o engenheiro responsável foi Raul Carneiro, a pedido do deputado federal Astolfo Dutra Nicácio ao então presidente da província de Minas, Júlio Bueno Brandão. Ela veio substituir uma antiga ponte de madeira e os trabalhos foram iniciados em 10 de junho de 1912, concluindo-se em 1914. Pois a nossa “Ponte Velha está fazendo 95 anos!
Quem entra na cidade pela Vila Minalda, é saudado no final da ponte com a inscrição em latim gravada em seu último suporte: pacificusne est ingressus tuus? , que significa “é pacífica a tua chegada?”. Na volta, para os que saem da cidade pela mesma Vila Minalda, outra saudação em latim no final da ponte: “revertere ad me suscipiam te”, que convida, “volta, que eu te receberei”.
A nossa “Ponte Velha” é assim descrita em um site da cidade: “A Ponte Metálica veio trazer notáveis benefícios ao desenvolvimento da cidade, dando também condições dela se expandir para seu lado direito. Trata-se de uma ponte artisticamente bem trabalhada, trazendo maravilhoso embelezamento à cidade. É um valioso patrimônio histórico”.
E ela não está só em sua originalidade e importância histórica: nossa querida “Ponte Velha” tem uma irmã gêmea na cidade de Rio Pardo, em São Paulo, conhecida por “Ponte de Euclides”, construída por ninguém menos que o escritor e engenheiro Euclides da Cunha. Essa ponte irmã completou 103 anos no dia 18 de maio. As informações nos foram passadas pela moradora de Rio Pardo, Maria Olívia Garcia Ribeiro Arruda, quando em visita a Cataguases. Confirmando a nossa vocação turística, a visitante fala sobre uma Cataguases, que infelizmente, não é a que enxergamos agora:

“Aliás, é preciso dizer que Cataguases é uma cidade encantadora, muito bem cuidada, com projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer, Aldary Toledo, Carlos Leão, Francisco Bolonha, Flávio de Aquino e Edgar do Valle, ancorados na declaração de Le Corbusier: "Somos infelizes por habitar casas indignas porque elas arruínam nossa saúde e nossa moral . (...) No entanto, a Arquitetura existe /Coisa admirável, a mais bela. / O produto de povos felizes e o que produz povos felizes. / As cidades felizes têm arquitetura." Além da beleza de concreto, os jardins das residências e as praças públicas são de criatividade ímpar.
E é a mesma Maria Olívia, a nossa visitante, que nos lembra as recomendações de Euclides da Cunha sobre os cuidados que se devem dispensar a uma ponte, como a conservação e a manutenção. Esta deve ser periódica, com reparações substanciais, realizadas de quatro em quatro anos. Nesse reparo são aplicadas as resinas protetoras, são reforçados os pontos desgastados, peças são substituídas, com muito cuidado, pois peças novas podem alterar-lhe a estrutura. Estamos procedendo assim com a nossa “Ponte Velha?”
E Maria Olívia ainda nos adverte: Gostaria de deixar aqui apenas um lembrete: o patrimônio histórico da cidade é da responsabilidade de todos. O patrimônio não é só o legado que é herdado, mas o legado que, através de uma seleção consciente, um grupo significativo da população deseja legar ao futuro. Quem não colabora com a preservação da memória coletiva, também não valoriza a própria identidade, nem respeita os valores da comunidade a que pertence!
Que a nossa ponte metálica, a tão familiar “Ponte Velha”, continue como um símbolo sobre o Rio Pomba, perguntando a todos, principalmente aos que periodicamente ocupam cargos públicos e que por isso têm obrigações maiores com a história de Cataguases: “é pacífica a sua chegada”?
Muito obrigado!

quarta-feira, 27 de maio de 2009


UMA CELEBRAÇÃO DA VIDA

Anderson Braga Horta

Este livro, além de ser um retrato vivido de Emanuel Medeiros Vieira, é uma porção de coisas, das quais uma que outra sou talvez capaz de antecipar, ainda que vagamente, ao leitor destas orelhas. Antes de mais nada (não nos iludam a crispação do texto e a complexidade das idéias que nele se jogam), é uma história de amor, sim.
Dito isso, podemos acrescentar que o romance – trata-se de um romance? – é, em boa medida, a discussão da própria estrutura e a história da própria elaboração. O romance fazendo-se. Curiosamente, sobre ele pontifica Júlia, seu núcleo feminino, dirigindo ao personagem-narrador.
“Nas tuas histórias, a rigor, não acontece nada, é mergulho mental, viagem interior.”
Não é só isso, mas é com certeza isso. É toda uma meditação sobre o quotidiano, o não-senso, a injustiça, a miséria, o absurdo de um mundo – o nosso mundo. O que, sem mais dizer, já nos põe em sintonia com tantos dos outros livros do autor – Meus Mortos Caminham Comigo nos Domingos de Verão, Metônia, O Homem que não Amava Simpósios...
Digamos mais. Que é a história de uma consciência. O repassar de uma vida, numa espécie de juízo. O fluxo de uma consciência que se retrata. Autocrítica. Catarse. Pois é também tudo isso, e comporta mais. Por exemplo (meio de raspão, embora), a orfandade do escritor brasileiro em face de uma imprensa e de um parque editorial alienados.
O estilo se ajusta ao espírito da narrativa (não entremos na discussão sobre se se trata de uma): linguagem coloquial, “natural”, espontânea, apesar das abundantes citações e alusões culturais... e com os requintes das modernas técnicas de narrar, é claro. Esse estilo é Emanuel falando, disparando sua máquina verbas, as palavras atropelando-se como se para não perder a oportunidade da vida. O mais intenso desse estilo é uma página eriçada de profundo erotismo, que deixo ao leitor encontrar (ou eleger).
Outra maneira de ver o livro é como uma crua meditação sobre a vida, seu sentido, seu não-sentido (Será que já não o deixei dito? Se já, fique a reiteração, que, afinal, cai a propósito: também as perplexidade e obsessões do personagem-narrador traduzem-se em repetições – de palavras, de idéias, de citações etc.)
Uma religiosidade latente permeia estas folhas. Às vezes patente, mas antes uma saudade da fé que fé atual. Estarei avançando demais? Se estou, culpe-se o narrador, que se questiona como questiona o próprio gênero literário em que navega.
Seja o que for o livro, “página memorialística, poesia tosca e áspera, contos encaixados” – atira o próprio narrado e, ato contínuo, recolhe as balas -, “é gesto humano de trabalho, aventura do espírito”. Sim, um livro que sua e sangra humanidade. Talvez uma oração – longa e sofrida – pela libertação do homem. Em todo caso, creio (veja-se a página final), uma celebração da vida. Com suas contradições, com seus altos e baixos, com suas glórias e mazelas. E com sua perseverante vontade de ascensão.

quinta-feira, 26 de março de 2009

BRASÍLIA - Poema de Emanuel Medeiros Vieira

Cidade das mangueiras em flor,
dos fundadores da utopia,
candangos, barra vermelho, florzinhas do cerrado
pássaros, encantos cerrados,
cidade do amolador de facas
(ela tem esquinas sim, mas é preciso decifrá-las),
da louvação às primeiras chuvas,
terra molhada em janeiro

Não, meu coração não quer saber da urbe palaciana,
dos maquiáveis planaltinos,
intrigas com soda cáustica.

Cidade dos criadores,
Da mistura de tantas raças, vários brasis
(ah, a moça tomando sorvete no ponto de ônibus).

Cidade do meu viver e do meu sobreviver,
de todos os sonhos,
das linhas retas do arquiteto,
e cidade do meu repouso.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Todos vivos, vivíssimos


Arre! Estava eu ainda costurando algumas palavras para dedicar ao amigo Agenor Ladeira, por conta do seu meio século de existência, vida, música e abundância – de quê, hein? - , quando recebo, como uma flechada no fígado, a notícia da morte do nosso Edinho da Guitarra.

Pedi aos meninos que fossem ao sepultamento em Visconde do Rio Branco e dei de andar daqui pra lá, de lá pra cá, buscando aplacar a minha inquietação. Começo a refletir: não faz muito tempo, partiu o Miltinho Canavan, cabra que destilava poesia, sem nunca ter escrito uma só palavra; agora toma o trecho rumo à essência outro poeta que também não era escritor, mas deixava fluir pelos dedos e boca dissonâncias, música, muita música. Encantar as pessoas era o ofício dos dois. Existia missão mais nobre? Por que perdemos tanto?

Constrangido, peço ajuda ao amigo e baterista Olney Figueiredo que, a partir de seu blog, me acode:

“Edinho, Edson Gonçalves, Natural de Ponte Nova, desde cedo, se interessou pela música, começando como baterista em pequenos grupos de sua cidade. Foi contemporâneo do violonista/cantor/compositor João Bosco, com quem "trocou figurinhas" no aprendizado do violão.

Conheci-o quando ele tocava guitarra num conjunto de bailes de Visconde do Rio Branco e, em meados dos anos 70 veio, a meu convite, integrar o Conjunto Spala, de Cataguases. Nossa vida e nosso gosto musical caminharam juntos em vários momentos.

Atualmente, Edinho vinha desenvolvendo um bom trabalho no Instituto Francisca de Souza Peixoto, dirigindo uma pequena orquestra, dando aulas de violão, organizando eventos culturais, além de continuar tocando e cantando em festas, recepções e em "barzinhos" em toda a região."
Corridos os dias, ganho algum alento e volto a esse texto. Isso ocorreu depois que me encontrei com o Dudu Viana, - o primogênito - e o Tiago Pé – o outro filho. Este me presenteou com seu tímido sorriso pelas ruas de Cataguases. Tiago, como o da Bíblia, crê nos desígnios de Deus. Não estive com a Carol e a Sônia, mas espero que a música as esteja acompanhando.

Já meu diálogo com o Dudu Viana se deu através da escuta atenta de seu excelente disco instrumental “De Passagem”. Entre as maravilhas do CD, está a faixa seis, “Samba da Noiva”, que, imagino, tenha sido composta para os músicos - esses malandros! - dialogarem sobre a beleza da moça e o seu futuro feliz nos braços de outro malandro. Fernando Drumond abre a conversa com seu lastimoso trombone:

- Nunca mais vamos ter essa mulher! Duda contrapõe de escaleta e discursa sobre a esperança:
- Nem tudo está perdido, tenha calma, ela um dia volta. Fernando volta à carga, ainda um tanto chorão, mas como quem vê alguma luz:
- Pode ser, sigamos por aqui vivendo de ilusão. Dudu Lima, a partir de seu patético contrabaixo, enche o nosso copo com uma boa dose de notas em improviso para que bebamos a dor e nos encharquemos do sentimento de perda:

-Tô sofrendo muito, tô sofrendo muito, tô sofrendo muito! Mas, no meio do caminho, em vez de uma pedra, aparece Edson Gonçalves, o nosso Edinho, empunhando com sabedoria a sua amiga guitarra:
- Coragem, assumam seus destinos! Nossa tarefa é embalar o sonho dos outros. O que nos conforta é que temos a poesia ao nosso lado. E poesia é essência. Essência é Deus!

A canção segue dolente e ao final os músicos assinam a obra com breves solos, ainda em improviso. Na verdade, ajudam a construir uma pauta que vai ficar sempre na ordem do dia, como arte.

E depois da obra composta continuam todos vivos, vivíssimos!