sábado, 21 de junho de 2008

Espaço Aberto para Zeca Junqueira


“Sejam realistas. Peçam o impossível!”

O jornal O Globo do dia 18/05 (domingo) dedicou nada menos que nove páginas do seu Segundo Caderno a falar de 1968, ano-chave da contracultura no mundo. Passaram-se 40 anos do ápice do movimento que queria derrubar o establishment a golpes de arte. Aonde chegamos? “A contestação já é parte do sistema, as pessoas não se reúnem mais, o mundo se globalizou, Deus está morto e salve-se quem puder”, responde lá o jornalista Toninho Vaz, autor das biografias de Torquato Neto (o Anjo Torto) e Paulo Leminsk (para o qual “morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma”).

Ao ler avidamente a matéria, lembrei de outra, “Sobriedade demais”, da colunista Martha Medeiros, publicada na Revista O Globo de 16/09/2007, que me surpreendeu então como uma alvissareira voz no meio do silêncio produzido pela falência de tantas utopias. O ano de 1968 esfumaçou-se, perdemos nossas convicções e a maioria de nós mudou o tom e é transmissora passiva de ruídos de coisas geladas, mecanizadas, chipadas, vazias de tudo para garantir a aceitação incontestável do reinado do bezerro de ouro. Essa maioria é composta de arautos do nada.

Martha cita oportunamente Hemingway, Bukowski, Dylan Thomas e cobra de si mesma o seu quinhão de desatino, o seu pileque por trás do texto, o LP arranhado soltando jazz de uma antiga vitrola enquanto uma velha e imaginária Remington substitui o computador e importuna tamborilando em voz alta o que é preciso tamborilar: dor, esperança, desespero, rebeldia, amor – arte!, e que se dane depois a ressaca, depois a gente acerta.

Sabiamente, Martha diz que está na hora de vasculharmos a cesta de papéis em busca do rascunho jogado fora só porque é rascunho - será que a vida rigorosamente passada a limpo não se traduz mesmo em rascunho, em aspereza, em intensidade proporcional ao sangue que ela contém? “Os escritores deste novo século já não se suicidam, a Sylvia Plath de hoje faz mamografia, a nova Ana Cristina Cesar faz pilates, o William Burroughs do século XXI precisa parar de beber por recomendação médica”, diz a colunista.
Esse súbito engasgo que Martha Medeiros sofre e nos repassa numa revista light de domingo, facilmente digerível com o familiar almoço do dia, me instiga botar a cara à mostra, já que “no meio desse quadro diluidor...há uma faixa de pessoas com fome de transcendência, porque a vida é pouca e nem todos agüentam o nu e o cru da falsa realidade dos reality shows”, como aponta o poeta Ferreira Gullar, em entrevista concedida ao Globo que fala de 1968.

Insurgir-se nesse “admirável mundo novo” e correr o alto risco de ser jogado como um rascunho pornográfico na lata de lixo da “arte” ou continuar fazendo mééééééé entre o grande rebanho de “artistas” pós-tudo enquanto o mundo desaba infecundo sobre nossas cabeças disciplinadas e vazias? Eis o dilema dos verdadeiros criadores postos “no paredão” pela assustadora capacidade de banalização da sociedade do espetáculo.
Que saudade de 1968, 1969, 1970!...
Segue o meu manifesto (atualíssimo!) pela passagem dos 40 anos daquela data, quando os hippies e a nossa geração do desbunde ousaram colocar a imaginação no poder.
Make love, not war.

Arte é rebelião e gozo
A arte é essencialmente transgressora e seu principal atributo
é promover o inconformismo e a não-aceitação de injustiças.
Arte é anti-ambiente, é releitura e reescritura do mundo,
inclusive no plano social.
A experiência da arte é a experiência da beleza e a beleza
liberta e traz descanso.
A arte não é moralista, é ética, portanto intuitiva, e
só pode ser provada por homens verdadeiramente livres.
Os que estão aprisionados e pela arte são tocados
passam a enxergar as grades e os muros que os cerceiam e
contra eles põem-se a obrar.
A arte exposta nos museus oficiais para a morna gente
mais preocupada com os costumes do que com a liberdade,
mais ciosa com a moralidade do que com a dignidade,
estaria mais adequada e surtiria mais efeito nos corredores
das penitenciárias, nos prostíbulos e
nos guetos onde a miséria, a loucura e o crime
não têm contraponto.
Van Gogh no túnel escuro e sem esperança das prisões
seria janela ensolarada por onde fugiriam todos os olhares.
Ao amanhecer e ao anoitecer, todas as prisões do mundo
deveriam tocar Mozart, Mahler, Beethoven para aliviar
as mentes atormentadas.
Pela música, os corpos continuariam com os carcereiros,
as almas, com a paz.
Nas igrejas não deveria haver santos de conveniência
mudos nos altares, mas poetas em carne e osso
bradando poesia no lugar da cantilena dos padres.
E nos hospitais, nos tribunais, em todas as casas de
punições e dores
a bondade, suprema obra de arte,
deveria estar sendo escrita, pintada e orquestrada,
exercida sem parar em todas as cores, letras e sons.
O verdadeiro artista caminha descalço sobre brasas e
delas só escapa para prosseguir sobre o fio da navalha
- sempre descalço.
A arte não é propriedade de ninguém e
só existe como rebelião e gozo.
O resto é rendição e conformismo.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônica: A morte do Zé Sarney


O anúncio no rádio ficou por minha conta: “Comunicamos com pesar o falecimento de Ivo Pereira Barbosa, cujo sepultamento se dará hoje, dia 04 de junho de 2008, às 15 horas, no cemitério de Dona Euzébia. O féretro sairá da capela mortuária daquela cidade. A família enlutada agradece a sua presença e solidariedade”.

Tive que incluir no texto o apelido do finado: Zé Sarney. Os possíveis ouvintes da emissora jamais poderiam saber a quem se referia a Nota de Falecimento, se lá constasse apenas o nome de pia.

Ivo, o nosso Sarney, levava essa alcunha porque tinha um bigode parecido com o do senador lá de Brasília; daqueles que partem das ventas e quase lambem a borda do queixo. Foi também um contador de histórias, dono de uma prosa onde predominava o patético, do nascer ao desaguar no nosso imaginário.

Mas não veio do Maranhão, nunca passou por perto de um Congresso ou Academia de Letras e tampouco sabia lá o que vem a ser um clã nordestino. Excluído, jamais chegaria a Presidente da República! Nunca enricou e diferente do que ocorrerá com o político, morreu sozinho no pronto socorro municipal; sua família não mereceu do Estado nem mesmo uma informação mais respeitosa sobre o que motivou a sua morte - na Certidão de Óbito consta apenas que faleceu em conseqüência de “Causa Indeterminada”. Indignação!

Nasceu na cidade de Manhuaçu há cinqüenta e um anos atrás, filho de João Pereira Barbosa e Alícia da Silva Barbosa. Passou boa parte de sua existência em Dona Euzébia. Lá, mantinha alguns familiares e um amigo carroceiro de apelido engraçado: Pandareco. De lá guardava boas e más lembranças. Entre as boas, falava das festas de casamento que freqüentava ainda na juventude; já a recordação da perda da casa onde morava mexia nos seus nervos e anuviava-lhe os olhos. Para lá voltou carregado ao reencontro com a mãe, de quem confessava sentir muita saudade. Seu pai, também falecido, era viajante.

Há um bom tempo morava em Cataguases. Costumava marcar presença nas rodas de conversa dos taxistas, funcionários de sacolões e frentistas dos postos de gasolina. Amigo e assessor do José Almir, programador musical da feira de artesanato, gastava lá as suas manhãs de domingo. O conterrâneo, Ildeu, era seu porto seguro, dele recebia e considerava bons conselhos.
Com a sua parca renda de aposentado pelo INSS, conseguiu organizar com gosto sua casa: dependurou na parede da sala alguns quadros primitivos, esticou tapete no chão e comprou um potente aparelho de som. Na estante, ostentava orgulhoso uma montagem fotográfica onde aparece em meio corpo portando a faixa presidencial! Compartilhava a audição de suas músicas sertanejas e românticas com os vizinhos e os passantes do final da Avenida Astolfo Dutra, onde morava. Vivia sozinho, mas vaidoso.

Caminhou comigo até a última primavera, ocasião em que revelou acreditar na sua popularidade e admiração pública. Previa inocente e engraçado no trocar das pernas: “Quando eu morrer, Cataguases vai decretar feriado nacional”!

Às vezes, dialogava com criaturas que nós, seres normais e adaptados à vida presente, não conseguíamos vislumbrar. Gostava de chuva - por várias vezes o flagrei falando sozinho, na porta de casa, apontando o dedo para o sol poente; chamava as águas que na curva do céu, ainda nuvens, apareciam-lhe feito “rabos de galo”.

Por razões que fogem ao nosso entendimento, deixou tudo de lado para enfrentar o que dizia temer: a morte. Decidido, Jejuou do arroz-com-feijão e por muitos dias limitou seu alimento ao extrato de cevada e lúpulo. Vagou desvairado pela cidade. Na tontura de suas horas, desconsiderou os limites do corpo, como se um espírito atormentado não precisasse também de um “cavalo” pra se manifestar!

Perdeu a batalha no último três de junho, terça-feira. Embora fosse conhecido, o féretro foi acompanhado por não mais do que vinte pessoas. Imagino que muitos, ao tomarem conhecimento de seu passamento se apiedaram. Outros, como bem disse o poeta Manuel Bandeira, “estavam todos voltados para a vida, absortos na vida, confiantes na vida” e não se deram conta da fatalidade.

Nas últimas palavras, dou o testemunho da retidão e honestidade do meu amigo. Ivo tinha nome limpo na praça, fazia questão de pagar em dia as suas contas. A propósito, antes de entrar em agonia, enviou-me, através de sua irmã, certa quantia para que em seu nome eu liquidasse uma prestação numa grande loja. Com a pressão em queda livre, partiu.

Não paguei o carnê. Devolvi o dinheiro à família enlutada e às voltas com as despesas do funeral. Que seus pretensos credores, se tiverem coragem e o Código de Endereçamento Postal, encaminhem cartinhas de cobrança ao Paraíso, aos cuidados de Deus. O endereço é Rua dos Pobres pelo Espírito, onde Zé Sarney, liberto, foi ser feliz.