quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Caso do Futebol

Silêncio Lusitano

Sim, este é mais um Caso engraçado que veio do mundo das transmissões esportivas de rádio. Envolve um narrador que emigrou da Europa e foi parar, não se sabe como e porque, naquela cidadezinha do interior de Minas.
Um pouco de história: nosso personagem apareceu naquele recanto depois de fugir da guerra na Europa, no início da década de quarenta do século passado. Chegou e gostando da paz existente naquela cidade, foi ficando, ficando.Só saiu cinqüenta anos depois, carregado pelos amigos. Tristeza e consternação marcaram o dia de sua partida, sentimentos sinceros daqueles que aprenderam a admirá-lo na sua humildade e grandeza de espírito. Era um Ser coletivo.
Mas, voltando ao alegre e divertido, o fato é que o homem, quando chegou, não encontrou muita dificuldade em comunicar-se, até porque a língua falada em seu país era também o Português. Tirante alguns brasileirismos e a economia no expressar das palavras do linguajar mineiro – lidileite, pópopó? Popopoquim. - o resto era tudo igual.
Optou pela carreira de comunicador de rádio, um espaço laboral que no interior, naquela época, não exigia investimento em Capital, - que ele não possuía – nem especialização. Bastava vencer o medo do microfone, a timidez, de início. O resto viria com a prática do dia-a-dia que incluía a leitura diária de jornais, a observação dos colegas e a pesquisa fonográfica. Começou apresentando um programa de músicas antigas, as quais já conhecia desde Portugal. Começava a trabalhar às 11 horas da noite e viajava com sua música madrugada adentro. Tocava Gardel, tocava Orlando Silva, Trio Los Panchos, Francisco Alves, Noel Rosa, Nelson Gonçalves, Amália Rodrigues e muito fado, fado, fado. De imediato ganhou a preferência dos boêmios e vagamundos da noite. Não muito tempo depois, caiu no gosto da comunidade que já o considerava filho dileto da terra. Sua popularidade ficou tão grande que alguns políticos chegaram a convidá-lo a integrar seus Partidos, oferecendo-lhe, até mesmo, a oportunidade de postular uma vaga na Câmara. Como não havia se naturalizado e teve sensibilidade para perceber que a entrada na vida político-eleitoral poderia lhe render algumas inimizades e desavenças, declinou do convite. Seguiu estrada ganhando a vida com as comissões de agenciamento publicitário e, é claro, como apresentador de programa musical.
Aqui começa o fato curioso e engraçado. Um dia, José Português, como era conhecido, foi convocado às pressas para substituir um narrador esportivo da emissora que adoecera e, em conseqüência, não tinha condições físicas de trabalhar na cobertura de uma importante partida de futebol. Por ter autocrítica, tentou se desvencilhar daquela tarefa. Primeiro pelo seu total desconhecimento da arte da bola e segundo pela velocidade que teria que imprimir nas suas narrativas. Não iria dar certo. Mas, depois do pedido e das argumentações do Diretor da emissora, aceitou contribuir para a solução do problema. Afinal, a empresa o havia abrigado num momento de extrema necessidade. Seria a hora de dar a contrapartida, com um pouco de sacrifício, é bem verdade. Para facilitar seu desempenho, a equipe deslocou para a narração o Repórter de Campo, cabendo ao José Português a tarefa de trabalhar na beira do gramado, buscando apenas as informações avulsas – escalação, trio de arbitragem etc. – sem dúvida uma tarefa mais tranqüila que a de narrador. Assim, o homem convenceu-se que as suas limitações de sotaque e diferenças lingüísticas não seriam empecilhos para vencer o desafio posto. Bastaria manter a calma e tudo daria certo. E foi.
O jogo terminou e José Português recebeu dos colegas efusivos cumprimentos pelo seu trabalho. Dera conta do recado, altaneiro, tranqüilo, sem arriscar-se em costumeiras firulas verbais, muito comuns nesse campo de atividade profissional. No entanto, há pessoas que juram ter nosso radialista cometido, pelo menos, uma gafe antes mesmo do início da partida. Falecera a esposa do diretor de um dos times e o juiz prestava à finada uma homenagem póstuma, anunciada pelo nosso “Repórter Esportivo” da seguinte forma:
-Queridos ouvintes, neste momento, estamos cá no campo de futebol a ouvir o Um Minuto de Silêncio!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Crônica/Tragédia Caipira

Alma em Pedaços
Narro aqui o que me foi contado pelo cidadão Ivo Pereira Barbosa, muito conhecido em Cataguases como Sarney, isso por conta do seu bigode bi-labial, do tipo que parte das ventas e quase lambe a borda do queixo. Mas esse Sarney, embora não seja maranhense, nem senador, é dono de uma prosa em que predomina o patético, do nascer ao deságüe do rio das histórias que conta. Vem comigo:
Pandareco era um humilde servidor público da Prefeitura de uma cidade próxima a Cataguases. Funcionário responsável pela coleta de lixo, trabalhava numa carroça puxada por uma besta, que em pouco tempo deixou de ser uma simples filha de jumento com égua, para se tornar a mulinha-amiga, mulinha-parceira, mulinha-irmã. Não exagero, por conta de sua inteligência, o muar, muito rapidamente, conquistou a simpatia e o coração do seu guia ao facilitar-lhe a execução das tarefas de rotina. Pandareco ficou dispensado até mesmo de segurar as rédeas, que permaneciam presas à lateral do assento da carroça. Ganhou liberdade de ação e tempo para adiantar o serviço saltando antes dos pontos de coleta. A bichinha, ao sentir a pressão da cela sobre o lombo já sabia que o seu dono estava de pé sobre o estribo e iria alçar vôo sobre a calçada; a ordem definitiva de parar vinha do balançar da carroça pra cima e pra baixo, seguido de um sonoro “Eeeiia!”. O comando de retomada de trecho vinha da simples expressão,“aamoo!”.
Assim iam os dois quase-irmãos pelas ruas da cidade, um pelo outro, cuidando da limpeza do município. A mulinha não contava com mais de cinco anos e se parecia com aquela que encontramos estampada no painel em azulejo da casada Nanzita, na avenida Astolfo Dutra. Lá, no painel em azulejo de Anísio o animal aparece altivo, orelhas em sentinela, transparecendo saúde e vivacidade.
A outra, companheira do Pandareco, de igual boniteza, conquistou a posição de titular da carroça depois que o Lerdeza, um burro velho, preguiçoso e viciado, morreu. A bestinha, ao assumir o cargo, já foi dando mostras de gostar de “enfrentar novos desafios” como se costuma dizer por aí, no mundo do trabalho. E pelo seu desempenho queria fazer história, superar o seu predecessor no ofício de puxar carroça de lixo da prefeitura. Não ganhou um, mas muitos nomes, idealizados alegremente pelo seu guia na rotina da faina, - Pitita, Bunita, Redonda, Dengosa - mas nenhum deles ficou em definitivo. Não houve tempo, pois veio a tragédia.
Pitita pernoitava num terreno público que o prefeito daquela cidade havia loteado, na perspectiva de transformá-lo num bairro popular. Um dos agraciados com a doação já iniciava a construção de sua nova morada e, para servir-se de água, fez um poço de mais ou menos cinco metros de profundidade. Numa tarde-noite de quinta-feira, Bunita, distraída no seu desjejum, sem perceber a existência do buraco foi arremessada ao fundo. Permaneceu ali, corpo dobrado, solitária, em desalinho, até Pandareco chegar, ao amanhecer. Redonda, já cansada de resistir por si mesma, entregue à sua própria sorte, só apresentava algum sinal de vida quando percebia, acima de sua cabeça e debaixo de um parco céu azul, a fisionomia de seu dono. Era o mundo que lhe restava. No entanto, apenas ensaiava uma reação, cujo gesto mais significativo - o que cortava o coração de Pandareco – era um breve repuxo na pata traseira direita, seguido de um frágil alento. Estava sem resistência, derrotada, no fundo do poço, incapacitada para o seu alegre exercício de puxar carroça.
O infortúnio do funcionário público e de sua companheira de labuta encheu o dia dos moradores da vizinhança que acorriam aos borbotões, ansiosos por assistir tudo de perto. Cada um tinha a sua opinião sobre a melhor estratégia de salvar o animal, mas nada de prático, nada que oferecesse a menor possibilidade de eficácia. E Pandareco, na sua humildade, ainda nutria alguma esperança...estava afeiçoado à mulinha:
- Ela tá viva, há de ter jeito!
Chamaram Chico-Laçador que conseguiu, depois de algumas tentativas, prendê-la pelo pescoço e pernas, mas logo em seguida avaliou que se a içassem pela corda poderiam acabar de matá-la, quebrando-lhe a coluna. E Dengosa, apresentava cada vez menos sopro de vida, só reagindo quando açodada pelo seu Dono-irmão:
- Agüenta, sua moleirona, tem eito, tem lixo pra catar!
Quando ouvia essas palavras de estímulo, ainda com a cabeça e pernas presas ao laço, Pitita abria os olhos anuviados, numa quase apagada esperança e voltava ao seu estado de desfalecimento. Pandareco, inusitado, se viu chorando pela primeira vez. Tirou a camisa pra limpar as lágrimas e se transformou em mais uma vítima da insensibilidade da turma que lhe deitou chalaça. O povo achou graça naquele homem abrindo o bué por conta de um bicho-carroceiro caído no poço. Ademais, ninguém nunca o tinha visto daquele jeito, sem a camisa, magricela, enrugado!
Pandareco estava curto da idéia por conta do ocorrido. Por outro lado, não era costume daquela gente buscar soluções dos problemas a partir do coletivo. De longe no tempo, avalio que, se houvesse vontade geral de livrar a burrinha do seu mal-destino, se todos cavassem em volta do poço – eram mais de 50 pessoas! – chegariam até o animal e, possivelmente, o salvariam.
Enfim, chegaram os homens do setor de Aterro e Desaterro da prefeitura e os da Ordem Estadual de Estradas de Rodagem, estes determinados a resolver de vez o problema. Apareceram por volta de quatro da tarde num carro amarelo e num caminhão-caçamba lotado de terra virgem.
Depois de escutar o curto e grosso argumento do homem de roupa caqui e boné na cabeça, - Não tem mais jeito, tá quase morta, vamos acabar com isso! – Pandareco baixou a cabeça, resignou-se, mas não quis assistir ao funeral. Liberado o local, o Mercedão fez a manobra, entrou de ré e posicionou-se.

(Ruído do motor erguendo a caçamba; derrama; portinhola traseira da caçamba socando várias vezes o caminhão e esgotando a terra. O ressoar das batidas ferro-a-ferro destoando do timbre grave - frio, abafado - para o médio - agressivo aos ouvidos, lancinante.)

Silêncio no entorno e no fundo do poço. Pandareco, a essa altura, já seguia pela estrada de São Manoel de Guaiaçu. Não viu o sacrifício e também ninguém nunca mais haveria de rir do seu incontrolável e pungente choro.