quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O mundo do Místico e do Materialista

Aproveito uma frase do Sermão da Sexagésima, do Padre Antônio Vieira, pregado na Capela Real no ano de 1655, para iniciar essas minhas breves e últimas palavras do ano aqui no Blog: “As ações, a vida, o exemplo, as obras são as que convertem o mundo”.
Lembro-me que nos meus primeiros dias de Colégio Cataguases, ainda um tanto assustado com a nova vida que iniciara, na década de mil novecentos e sessenta, ouvi algo nessa linha, do professor Nilton Rossi:
- As palavras movem, os exemplos arrastam! Juro, eu não imaginava que o Mestre havia buscado na fonte do padre-pensador, a sabedoria que nos transmitia, com muito gestual, mas serenamente!
De quais exemplos são seguidas as nossas palavras?, é a pergunta que não deve calar, de modo que o que verbalizamos não se enverede pela retórica vazia, não caia na inépcia; é preciso não trilhar o caminho das verdades que dão no fosso da hipocrisia, ou simplesmente compõem o quadro, às vezes cintilante, mas quase sempre, superficial das aparências. É fundamental não ser mentiroso consigo mesmo para não o ser com os outros.
Viver bem é viver coerentemente e em paz com nós mesmos. É poder olhar altivo nos olhos do próximo, sem constrangimento ou culpa; é acertar no equilíbrio entre a teoria e a prática; encontrar a justa medida da nossa existência, considerando nossa missão de homens e mulheres nesse mundo que nos é dado. Fernando Pessoa, ainda em 1907, já escrevia: Nunca desistir nem recuar do propósito de fazer bem à humanidade; nunca esquecer os sofrimentos e as dores humanas. Assim, é possível experimentar certa realização pessoal, alguma dose de felicidade.
Mas, caro leitor, não se iluda: sustentar com exemplos as palavras tem um custo, em qualquer tempo e em qualquer lugar, principalmente, quando essa postura é assumida por homens depositários de Boas Novas, em cenários que mais tendem a conformar, conservar valores do que a transformar, revolucionar.
Seguindo o filme, passo a falar agora de duas figuras históricas e verdadeiras que, felizmente, sobreviveram, apesar de tudo. São os nossos principais aniversariantes do mês.
O primeiro, apesar de ter sido sepultado há quase dois mil anos, renasce a cada vinte e cinco de dezembro. Não posso afirmar, então, se a festa é de seu aniversário ou renascimento.
Homem nascido na Judéia, região existente entre o mar Morto e o mar Mediterrâneo, - no mesmo lugar onde brigam até hoje Israelitas, Palestinos e outros grupos fundamentalistas- passou a maior parte da sua vida em Nazaré, na Galiléia, uma região do norte de Israel, onde também ocorreu a sua transfiguração. Como esta crônica não pretende abordar o lado místico do Filho de Deus, apenas deixo registrado que os livros dos Evangelhos tratam de seus 35 milagres e que o primeiro deles teria ocorrido em Caná, durante uma festa de casamento, quando Ele transformou água em vinho, para atender aos convivas. Pouco depois, no lago de Genesaré, encheu em profusão a rede dos pescadores(Simão e Pedro) de peixes, quase fazendo o barco afundar. Houve também a multiplicação dos cinco pães e dois peixes para servir de alimento a milhares de homens, mulheres e crianças pobres; Isso sem contar a cura de cegos e doentes e o ressuscitamento de Lázaro que havia morrido já há quatro dias. Em todos os casos, é sabido que sua obra foi feita para demonstrar o amor e a misericórdia de Deus.
Já a ética do Jesus histórico estava baseada na defesa da vida em sua plenitude; vida que seria um dom de Deus, portanto, direito de todos, sem discriminação. Assim, os homens seriam iguais em dignidade e criados à imagem e semelhança do Senhor. Se naquela época alguns eram mais iguais do que outros, seria em decorrência da injustiça social que grassava no Império Romano. Pregando e dando exemplos de humildade, lavou os pés de seus discípulos, lembrando que a morada de Deus era o coração de cada um. Fez sua clara opção preferencial pelos pobres, marginalizados e enfermos. Era o ungido, o Jesus de Nazaré.
O outro homenageado nesta crônica completou cem anos no último dia quinze de dezembro. Seu nome, Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares, arquiteto renomado e também defensor de uma sociedade sem desigualdades. Importantes são a família, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar, não se cansa de repetir em suas entrevistas. No seu livro “ Minha Arquitetura”, fala com orgulho de seu avô que, embora tivesse aposentado como Ministro do Supremo Tribunal Federal, morreu pobre, despossuído. Por defender idéias comunistas, teve que se exilar na França, na década de 1960, durante o regime militar no Brasil. Lá, trabalhou para o governo argelino, desenhando a Universidade de Constantine e depois a mesquita de Argel. Criou também a sede do Partido Comunista Francês e o prédio da Editora Mondadore, na Itália.
Antes, já havia projetado várias construções na criação de Brasília, no final da década de 1950 no governo Juscelino Kubitschek, cujo plano urbanístico foi feito por Lúcio Costa; dentre elas se destacam o Palácio do Planalto, da Alvorada, o Congresso Nacional. Niemeyer manifesta, sempre que pode, a sua insatisfação com os rumos tomados pela Capital Federal, construída, originalmente, para abrigar os trabalhadores, sede do governo e servidores públicos.
Projetou para Cataguases, ainda na década de quarenta do século passado, o prédio do Colégio de Cataguases, na granjaria e a casa do escritor Francisco Inácio Peixoto, por quem foi contratado. O projeto da casa foi entregue em 1940 e o Colégio concluído em 1947.
Reconhecido mundialmente pelo seu trabalho na arquitetura, Niemayer é não menos importante pelas posições políticas que adotou ao longo de sua vida. Jamais se curvou aos regimes autoritários ou abriu mão de defender e lutar, como filiado de seu partido e ativista político, pelo advento de uma sociedade igualitária, sem explorados ou exploradores. Como o Jesus histórico, defende a dádiva de uma vida plena e abundante para todos, homens e mulheres.
Os dois – um Místico e outro Materialista – com a mesma boa vontade, almejam a sociedade fundada nos ideais de fraternidade e solidariedade que os próprios homens, com seus Sistemas e vícios, ao longo de milênios, ainda não foram capazes de construir.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007




A dimensão poética e a cidade

A cidade, se olhada a fundo e ao largo, torna-se objeto de admiração, satisfação pessoal, ideal de nossas vidas. Olhemos os traçados das ruas, seus aspectos paisagísticos, sua arquitetura com seus recados históricos, seres humanos e animais. Depois, para ver melhor, é importante imergir nos meandros do imaginário popular. Navegar é preciso para romper com o primarismo das pedras amontoadas e a natureza em estado bruto: árvores, rios, morros, céu e gente, zanzando de um lado ao outro, tudo matéria pura e simples. Subjetivar, embarcar na dimensão poética das coisas, ver além do que a vista alcança, abarcar o mundo. A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais!
Algumas pessoas – singulares - se destacam pela originalidade, jeito-de-ser único, anormal, além da banalidade, da mesmice. Outras – plurais - materializam os personagens dos ficcionistas e reafirmam a velha máxima de que a vida imita a arte e a arte imita a vida. O grande mentecapto, personagem de Fernando Sabino e Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, passeiam de mãos dadas pelos altos e baixos de Cataguases. Tenho dito.
Redigi os dois parágrafos acima a partir de uma crônica que publiquei há tempos em um jornal – O Painel. Não me lembro em qual data. Sei que no texto tratei da existência de três personagens, dos quais volto a falar neste blog. Omito os nomes, mas afianço: trata-se de gente que faz a diferença, figuras instigantes, merecedoras de muitas palavras. Temos muitas outras, dignas de um foco narrativo, mas hoje viajo, novamente, na companhia dos meus três conhecidos amigos. Embarque comigo.
A primeiro é onipresente, ubíquo. Muito embora não se tenha notícia de que materialize nenhuma divindade, consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo. Num sábado à noite foi visto numa quermese, a bordo do ônibus que levava dançantes e caçadores de aventuras amorosas para um baile de forró num município vizinho e também mediando uma barulhenta discussão política numa roda de carroceiros. Alguns exagerados ainda dão conta de que ele tenha sido visto na capela mortuária, apresentando suas condolências a uma família enlutada. Tinha aparência carregada, de dor sincera, conformando-se com o ambiente de perda do ente querido. Mas isso não é crível. Embora seja homem, é conhecido por seu apelido no feminino, – Toda. Figurinha fácil.
A segunda personagem é misteriosa e pode ser encontrada a qualquer momento em Cataguases. Basta esquecer os preconceitos de classe, cor, gênero e raça, como convém ao bom cidadão, e passar em visita aos botecos - nem tão ordinários assim - que circundam o centro da urbe. Não precisa ir muito longe, procure nas imediações da Praça Santa Rita e Rui Barbosa. Não a encontrando, desça pela ponte velha e dobre no sentido de Leopoldina. Não ande muito, pois ela nunca se embrenha pelo asfalto. Seu roteiro inclui, no máximo, uma passada no último estabelecimento da rua de pedras que bem pode ser um empório. Se, ainda assim, não localizá-la, tome o coletivo e desembarque no bairro Beira Rio. Volte experimentando, entre nos bares, espie. É uma mulher e permanece por duas, três, quatro e, se for conveniente, por mais horas sentada, bebendo cerveja e destilando discretos sorrisos aos passantes. É magra, pernas longilíneas, cabelos curtos, melindrosos, mãos de muitos anéis, usa sandálias bem ventiladas, bolsa e calça jeans que só chegam até as finas canelas. Nunca tem pressa pra nada nessa vida. Alto lá, não pense que a nossa “Papoula da Tarde” seja uma desclasificada. Não, ela trabalha de carteira assinada, paga IPTU, convive no dia-a-dia com gregos, troianos e italianos, vive bem integrada na comunidade e... nada deve a ninguém. Mas é nos ambientes dos bares que se reconhece por inteira: interioriza-se, encontra-se na sua subjetividade, consegue purgar os seus percalços afetivos, extrair os dolorosos calos do desamor, organizar seus entreveros mentais. Destaca-se no cenário e, inevitavelmente, atrai os carentes e perdidos, dos quais ouve os dramas com a atenção e paciência devidas – ou indevidas. Complacente, esforça-se por ser cordata com a argumentação de todos, preservando a harmonia do ambiente. Sofreu muito com a perda de um de seus diletos amigos, o professor Matosinho, a quem pedia conselhos para depois desmanchar-se num choro pungente. Assim, graças às sábias palavras do Mestre, muitas vezes, livrou-se de suas dores da alma, desabafou, purgou seus suplícios, reconciliou-se consigo mesma.
Tive notícias de que a terceira figura de que tratei no Painel mudou-se de Cataguases. Fiquei um tanto assim confuso com essa informação, até porque eu tinha lá as minhas dúvidas se ela realmente existia ou fora produto da minha imaginação. Se não existiu, como é que pode ter se transferido para outro lugar? Trata-se de um simples pescador que, no descer do sol, ia rio acima na busca dos peixes. Homem de corpo musculoso e negritude infinita, subia remando até uma certa Ilha do Horizonte e depois descia nas Águas da Meia-Noite, estacionando seu barco nas imediações do bairro Leonardo, nas pedras existentes no meio do Pomba. Ali, no virar do calendário, punha-se de pé e com as mãos em conchas no entorno da boca. Olhava para o céu e uivava, uivava, uivava, feito um lobo. Seu uivo, associado ao barulho intenso da cachoeira, produzia uma estranha magia, atraindo os peixes que pululavam à flor d´água, em reboliço, atracando-se uns aos outros. Era o momento de lançar a rede e encher a embarcação. Alguns jovens mais imaginativos que permaneciam até àquelas horas, observando o movimento do sobe-e-desce no bairro, diziam que o homem, no momento do ritual, passava por uma espécie de metamorfose: “Seu corpo ficava cheio de pelos, como um lobisomem!“ No entanto essa parte da história não pode ser confirmada, já que o nosso personagem só podia ser visto à distância e o escuro da noite não permitiria a observação humana dos detalhes. Por outro lado, é corrente a informação de que, durante o espetáculo, as nuvens deslocavam-se em movimentos circulares, cobrindo quase que totalmente a lua cheia, enegrecendo o ambiente. Uma força misteriosa agindo na natureza!
O real e o fantástico podem perfeitamente conviver em harmonia compondo a nossa existência. É preciso buscar também no campo imaterial o que a objetividade não nos oferece como possibilidade de vida. Nesse sentido, vale tudo no exercício da busca da felicidade. Não se realizam em sua humanidade os seres feito do frio barro, da crua materialidade, incapaz de produzir emoções, alegrias, Outros Sentimentos. Ademais, o concreto e o abstrato se entrecruzam e se completam. Nas ruas andam pessoas crentes, movidas pela fé no que não conseguem tocar, mensurar; nas igrejas reza-se encaminhando pedidos aos santos das causas impossíveis; na solidão das casas moram seres humanos que sonham e alimentam desejos na dureza do correr dos dias.
A vida levada objetivamente, no limite dos cinco sentidos, perde a poesia, afunda-se no fastio, na aridez dos corpos. Não revela seu encantamento.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Dois casos do Futebol de Cataguases

Deixa comigo!

Jogo entre o Bairro Jardim e o time do Eurides, o Brasil, no campo do Flamengo, em Cataguases, no início da década de 70. Partida quentíssima! O juiz, José Cabrita, correndo ao lado, estica os ouvidos para captar o que perguntava o maestro Bugarim, meio campo do Bairro Jardim:
Seu José, por favor, quanto tempo falta pra terminar o jogo?
Artur estava preocupado com aquele zero a zero e buscava a informação para pensar nova estratégia para vencer o jogo. Percebeu que tinha um aliado na sua empreitada. Ainda na corrida, olhando o relógio, Cabrita respondeu:
- Faltam quinze, joga na área que eu dou pênalti.

Desentendido

Dr. Astolfo, truculento delegado da cidade na década de 1950, encontra Jaú Feijão zanzando numa quebrada, madrugada de sábado, nas imediações do bairro Leonardo.
Blitz. Jaú arrochado na geral, mãos na nuca, se identifica como jogador de bola de uma boa equipe da cidade na época. Busca uma saída daquela situação constrangedora e, simpático, lembra ao policial de seu perfil de jogador popular, muito admirado pelos torcedores:
- O senhor não me conhece, Doutor? Sou o Jaú...o Jaú Feijão, lateral do Operário.
- Não lhe conheço nem quero conhecer, seu boçal! Retruca o delegado
Jaú com a sua habitual mansidão e sem entender o significado do qualificativo, agradece:
-Boçal? Bondade sua, doutor, bondade sua.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Outro Caso do Nosso Futebol


CELEBRIDADE
A genialidade de Chico Buarque de Holanda toca corações e mentes. Emanuel Messias, amigo, músico, contador, mágico e integrante do Aero, um grupo musical histórico no município de Cataguases, foi mordido pela mosca azul e apaixonou-se de vez pela obra e pela vida do compositor, escritor, cantor, poeta, etc. Por conta disso, conhece praticamente todos os passos de Chico Buarque nesse mundo de Deus. Canta e toca as músicas, sabe as letras, tem os discos e num bom papo, sempre tira da manga uma história “Buarqueana” para contar.
Aqui começa o Caso. Um dia, Emanuel ficou sabendo que um tio seu, conhecido na cidade por Miraí, havia atuado como jogador do Flamenguinho no final da década de 50, quando o time estava treinando no campo do Gimnásio de Cataguazes, exatamente no período em que Chico ali estudou.
Entusiasmado, ele procurou seu parente e perguntou-lhe se, por acaso, num dos dias de treino, o artista – o Chico - havia aparecido. Pediu que ele buscasse em suas lembranças uma palavra, um olhar, qualquer detalhe, um momento fugaz de seu ídolo, naquela época. Seria mais um precioso registro para o seu banco de informações. Para estimular a memória do tio, tirou do bolso uma foto do compositor e mostrou, agitado, na ânsia de conseguir fazê-lo lembrar-se:
-É esse, tio, vê se o senhor se lembra desse garoto, é o Chico Buarque!
Miraí olhando bem para a foto, cruzou as pernas, recostou na poltrona, franziu a testa, respirou fundo e mandou:
-Olha Emanuel, realmente, havia alguns meninos que ficavam na beira do gramado pegando as bolas que saiam pela lateral. Esse aqui, eu não estou sabendo quem é, mas, de qualquer forma, faz o seguinte: liga pra ele e fala do “Sarrafo”. Tenho certeza de que ele vai se lembrar de mim.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Caso do Futebol

Silêncio Lusitano

Sim, este é mais um Caso engraçado que veio do mundo das transmissões esportivas de rádio. Envolve um narrador que emigrou da Europa e foi parar, não se sabe como e porque, naquela cidadezinha do interior de Minas.
Um pouco de história: nosso personagem apareceu naquele recanto depois de fugir da guerra na Europa, no início da década de quarenta do século passado. Chegou e gostando da paz existente naquela cidade, foi ficando, ficando.Só saiu cinqüenta anos depois, carregado pelos amigos. Tristeza e consternação marcaram o dia de sua partida, sentimentos sinceros daqueles que aprenderam a admirá-lo na sua humildade e grandeza de espírito. Era um Ser coletivo.
Mas, voltando ao alegre e divertido, o fato é que o homem, quando chegou, não encontrou muita dificuldade em comunicar-se, até porque a língua falada em seu país era também o Português. Tirante alguns brasileirismos e a economia no expressar das palavras do linguajar mineiro – lidileite, pópopó? Popopoquim. - o resto era tudo igual.
Optou pela carreira de comunicador de rádio, um espaço laboral que no interior, naquela época, não exigia investimento em Capital, - que ele não possuía – nem especialização. Bastava vencer o medo do microfone, a timidez, de início. O resto viria com a prática do dia-a-dia que incluía a leitura diária de jornais, a observação dos colegas e a pesquisa fonográfica. Começou apresentando um programa de músicas antigas, as quais já conhecia desde Portugal. Começava a trabalhar às 11 horas da noite e viajava com sua música madrugada adentro. Tocava Gardel, tocava Orlando Silva, Trio Los Panchos, Francisco Alves, Noel Rosa, Nelson Gonçalves, Amália Rodrigues e muito fado, fado, fado. De imediato ganhou a preferência dos boêmios e vagamundos da noite. Não muito tempo depois, caiu no gosto da comunidade que já o considerava filho dileto da terra. Sua popularidade ficou tão grande que alguns políticos chegaram a convidá-lo a integrar seus Partidos, oferecendo-lhe, até mesmo, a oportunidade de postular uma vaga na Câmara. Como não havia se naturalizado e teve sensibilidade para perceber que a entrada na vida político-eleitoral poderia lhe render algumas inimizades e desavenças, declinou do convite. Seguiu estrada ganhando a vida com as comissões de agenciamento publicitário e, é claro, como apresentador de programa musical.
Aqui começa o fato curioso e engraçado. Um dia, José Português, como era conhecido, foi convocado às pressas para substituir um narrador esportivo da emissora que adoecera e, em conseqüência, não tinha condições físicas de trabalhar na cobertura de uma importante partida de futebol. Por ter autocrítica, tentou se desvencilhar daquela tarefa. Primeiro pelo seu total desconhecimento da arte da bola e segundo pela velocidade que teria que imprimir nas suas narrativas. Não iria dar certo. Mas, depois do pedido e das argumentações do Diretor da emissora, aceitou contribuir para a solução do problema. Afinal, a empresa o havia abrigado num momento de extrema necessidade. Seria a hora de dar a contrapartida, com um pouco de sacrifício, é bem verdade. Para facilitar seu desempenho, a equipe deslocou para a narração o Repórter de Campo, cabendo ao José Português a tarefa de trabalhar na beira do gramado, buscando apenas as informações avulsas – escalação, trio de arbitragem etc. – sem dúvida uma tarefa mais tranqüila que a de narrador. Assim, o homem convenceu-se que as suas limitações de sotaque e diferenças lingüísticas não seriam empecilhos para vencer o desafio posto. Bastaria manter a calma e tudo daria certo. E foi.
O jogo terminou e José Português recebeu dos colegas efusivos cumprimentos pelo seu trabalho. Dera conta do recado, altaneiro, tranqüilo, sem arriscar-se em costumeiras firulas verbais, muito comuns nesse campo de atividade profissional. No entanto, há pessoas que juram ter nosso radialista cometido, pelo menos, uma gafe antes mesmo do início da partida. Falecera a esposa do diretor de um dos times e o juiz prestava à finada uma homenagem póstuma, anunciada pelo nosso “Repórter Esportivo” da seguinte forma:
-Queridos ouvintes, neste momento, estamos cá no campo de futebol a ouvir o Um Minuto de Silêncio!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Crônica/Tragédia Caipira

Alma em Pedaços
Narro aqui o que me foi contado pelo cidadão Ivo Pereira Barbosa, muito conhecido em Cataguases como Sarney, isso por conta do seu bigode bi-labial, do tipo que parte das ventas e quase lambe a borda do queixo. Mas esse Sarney, embora não seja maranhense, nem senador, é dono de uma prosa em que predomina o patético, do nascer ao deságüe do rio das histórias que conta. Vem comigo:
Pandareco era um humilde servidor público da Prefeitura de uma cidade próxima a Cataguases. Funcionário responsável pela coleta de lixo, trabalhava numa carroça puxada por uma besta, que em pouco tempo deixou de ser uma simples filha de jumento com égua, para se tornar a mulinha-amiga, mulinha-parceira, mulinha-irmã. Não exagero, por conta de sua inteligência, o muar, muito rapidamente, conquistou a simpatia e o coração do seu guia ao facilitar-lhe a execução das tarefas de rotina. Pandareco ficou dispensado até mesmo de segurar as rédeas, que permaneciam presas à lateral do assento da carroça. Ganhou liberdade de ação e tempo para adiantar o serviço saltando antes dos pontos de coleta. A bichinha, ao sentir a pressão da cela sobre o lombo já sabia que o seu dono estava de pé sobre o estribo e iria alçar vôo sobre a calçada; a ordem definitiva de parar vinha do balançar da carroça pra cima e pra baixo, seguido de um sonoro “Eeeiia!”. O comando de retomada de trecho vinha da simples expressão,“aamoo!”.
Assim iam os dois quase-irmãos pelas ruas da cidade, um pelo outro, cuidando da limpeza do município. A mulinha não contava com mais de cinco anos e se parecia com aquela que encontramos estampada no painel em azulejo da casada Nanzita, na avenida Astolfo Dutra. Lá, no painel em azulejo de Anísio o animal aparece altivo, orelhas em sentinela, transparecendo saúde e vivacidade.
A outra, companheira do Pandareco, de igual boniteza, conquistou a posição de titular da carroça depois que o Lerdeza, um burro velho, preguiçoso e viciado, morreu. A bestinha, ao assumir o cargo, já foi dando mostras de gostar de “enfrentar novos desafios” como se costuma dizer por aí, no mundo do trabalho. E pelo seu desempenho queria fazer história, superar o seu predecessor no ofício de puxar carroça de lixo da prefeitura. Não ganhou um, mas muitos nomes, idealizados alegremente pelo seu guia na rotina da faina, - Pitita, Bunita, Redonda, Dengosa - mas nenhum deles ficou em definitivo. Não houve tempo, pois veio a tragédia.
Pitita pernoitava num terreno público que o prefeito daquela cidade havia loteado, na perspectiva de transformá-lo num bairro popular. Um dos agraciados com a doação já iniciava a construção de sua nova morada e, para servir-se de água, fez um poço de mais ou menos cinco metros de profundidade. Numa tarde-noite de quinta-feira, Bunita, distraída no seu desjejum, sem perceber a existência do buraco foi arremessada ao fundo. Permaneceu ali, corpo dobrado, solitária, em desalinho, até Pandareco chegar, ao amanhecer. Redonda, já cansada de resistir por si mesma, entregue à sua própria sorte, só apresentava algum sinal de vida quando percebia, acima de sua cabeça e debaixo de um parco céu azul, a fisionomia de seu dono. Era o mundo que lhe restava. No entanto, apenas ensaiava uma reação, cujo gesto mais significativo - o que cortava o coração de Pandareco – era um breve repuxo na pata traseira direita, seguido de um frágil alento. Estava sem resistência, derrotada, no fundo do poço, incapacitada para o seu alegre exercício de puxar carroça.
O infortúnio do funcionário público e de sua companheira de labuta encheu o dia dos moradores da vizinhança que acorriam aos borbotões, ansiosos por assistir tudo de perto. Cada um tinha a sua opinião sobre a melhor estratégia de salvar o animal, mas nada de prático, nada que oferecesse a menor possibilidade de eficácia. E Pandareco, na sua humildade, ainda nutria alguma esperança...estava afeiçoado à mulinha:
- Ela tá viva, há de ter jeito!
Chamaram Chico-Laçador que conseguiu, depois de algumas tentativas, prendê-la pelo pescoço e pernas, mas logo em seguida avaliou que se a içassem pela corda poderiam acabar de matá-la, quebrando-lhe a coluna. E Dengosa, apresentava cada vez menos sopro de vida, só reagindo quando açodada pelo seu Dono-irmão:
- Agüenta, sua moleirona, tem eito, tem lixo pra catar!
Quando ouvia essas palavras de estímulo, ainda com a cabeça e pernas presas ao laço, Pitita abria os olhos anuviados, numa quase apagada esperança e voltava ao seu estado de desfalecimento. Pandareco, inusitado, se viu chorando pela primeira vez. Tirou a camisa pra limpar as lágrimas e se transformou em mais uma vítima da insensibilidade da turma que lhe deitou chalaça. O povo achou graça naquele homem abrindo o bué por conta de um bicho-carroceiro caído no poço. Ademais, ninguém nunca o tinha visto daquele jeito, sem a camisa, magricela, enrugado!
Pandareco estava curto da idéia por conta do ocorrido. Por outro lado, não era costume daquela gente buscar soluções dos problemas a partir do coletivo. De longe no tempo, avalio que, se houvesse vontade geral de livrar a burrinha do seu mal-destino, se todos cavassem em volta do poço – eram mais de 50 pessoas! – chegariam até o animal e, possivelmente, o salvariam.
Enfim, chegaram os homens do setor de Aterro e Desaterro da prefeitura e os da Ordem Estadual de Estradas de Rodagem, estes determinados a resolver de vez o problema. Apareceram por volta de quatro da tarde num carro amarelo e num caminhão-caçamba lotado de terra virgem.
Depois de escutar o curto e grosso argumento do homem de roupa caqui e boné na cabeça, - Não tem mais jeito, tá quase morta, vamos acabar com isso! – Pandareco baixou a cabeça, resignou-se, mas não quis assistir ao funeral. Liberado o local, o Mercedão fez a manobra, entrou de ré e posicionou-se.

(Ruído do motor erguendo a caçamba; derrama; portinhola traseira da caçamba socando várias vezes o caminhão e esgotando a terra. O ressoar das batidas ferro-a-ferro destoando do timbre grave - frio, abafado - para o médio - agressivo aos ouvidos, lancinante.)

Silêncio no entorno e no fundo do poço. Pandareco, a essa altura, já seguia pela estrada de São Manoel de Guaiaçu. Não viu o sacrifício e também ninguém nunca mais haveria de rir do seu incontrolável e pungente choro.

domingo, 8 de julho de 2007

Crônica Inédita

ilustração: Altamir Soares
O Coronel, o Empoçado e o Serra da Onça

Conto aqui no blog o Caso de uma partida de futebol que mora no imaginário do povo do distrito de Cataguarino, um aprazível lugar, distante mais ou menos quinze quilômetros de Cataguases, Minas Gerais. Essa história me foi contada por um amigo, conhecido por Chicão Lomeu, que não estava no jogo, mas dela tomou conhecimento através de seu irmão, hoje com 94 anos.
Corria quente o “Clássico” entre o Empoçado(nome de Cataguarino, na época) e o Serra da Onça, no então distrito vizinho de Guidoval, na década de 30 do século passado. Partida empatada, um a um, e o juiz comete o despautério de marcar uma penalidade, na entrada da grande área, contra o time da casa, o Serra da Onça. Faltavam menos de dois minutos para o fim do embate. Empurra daqui, discute dali, foi-não-foi pênalti, bate-não-bate e os torcedores do Serra da Onça resolvem buscar ajuda do Coronel Reverenciano, que estava ali só para marcar presença, sem nada entender da arte da bola.- Coronel, num pode deixar bater que nóis perde o jogo! Confusão ainda formada no centro do gramado e o juiz inflexível na sua marcação. O Coronel, num instante de solidariedade com os Seus, ordena o bandeirinha que convoque o juiz à beira do gramado para uma conversa. Este, imediatamente, corre até o árbitro e transmite o recado, da forma que entendeu:
- Óia, o Coronel tá querendo falá concê. Faz o que ele mandá, senão nóis não sai vivo daqui! O juiz vai até o coronel e os dois, observados pelos agitados torcedores do Serra da Onça, travam o seguinte diálogo:
-O senhor marcou um pênalti contra nóis, a turma tá dizendo que num foi...
-Coronel, o beque do seu time derrubou o atacante perto da linha da área, do lado de dentro!
- Tão dizendo aqui que num foi nada, num foi pênalti, não!
- Foi dentro...
(Foi fora, foi fora ! grita a turma em coro)
-Foi dentro da área. Agora eu já marquei, o jogo tá parado e tem que ser cobrado...
O Coronel pensou por alguns segundos. Para não desmoralizar o juiz e, ao mesmo tempo, atender aos seus mandados, decidiu:
- Muito bem, o senhor vai mandá batê o pênalti, mas lá no outro gol! Acabou a conversa!
Depois do tiro-pra-cima do Coronel Reverenciano, que foi precedido de muito empurra-empurra entre jogadores, juiz, torcedores, bandeirinhas e capangas, a penalidade foi cobrada pelo atacante do Empoçado, contra o seu próprio goleiro. Chicão me contou que ainda houve um Acordo-mineiro entre o Coronel e os dois times, no seguinte sentido: o jogador bateria o pênalti, mas jogaria a bola pra fora. Assim, a saída seria honrosa, com o empate da partida. No entanto, por incrível que possa parecer, o atacante não conseguiu errar na cobrança e botou a redonda pra dentro do gol. Sem saída, o juiz mandou registrar na súmula: “Gol contra de pênalti.” Encerramento do jogo, dois a um pro time da casa, o Serra da Onça.

domingo, 10 de junho de 2007

Caso Inédito

Informação de quem já sabe o caminho

Um amigo meu, perdido na estrada, no entorno da cidade de Formiga MG , precisou informar-se onde havia um mecânico, para dar socorro ao seu carro que, tudo indicava, estava fundindo o motor. Esse diagnóstico foi feito por ele mesmo já que o veículo perdera força e a traseira soltava uma fumaceira infernal. Na chegada a um posto de gasolina, deu com um sujeito na porta de um boteco, portando numa das mãos um pedaço de toicinho de porco no palito e na outra uma dose de cachaça servida naqueles copos com medida. Solícito, o homem dispôs-se a informá-lo sobre a existência de uma oficina, mas do jeito mineiro que às vezes mais confunde que clareia:

- Ocê vai por esta avenida e quando chegar no penúltimo quebra-molas dobra à direita.

Meu amigo agradeceu a informação e saiu, mas só quando estava a caminho atinou que não conseguiria identificar o penúltimo quebra-molas daquela reta longuíssima, se não fosse até o final da avenida, quando, claro, teria passado pelo último obstáculo. Depois teria que voltar e dobrar... Já retornando, levou pela cara o fumacal que o seu próprio carro havia produzido e atormentou-se com duas dúvidas que habitavam aquela cabeça aflita de pré-enguiçado: Primeira dúvida: o próximo quebra-molas seria o penúltimo ou o segundo? Segunda dúvida: Teria que entrar à esquerda ou à direita?

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Crônica

DIVAGAÇÕES DE UM CORAÇÃO-JOGADOR

Breve piscar de olhos e me vejo no campo do Flamengo, três décadas depois, sob um ameno sol da manhã. Aguardo o início da partida entre o time da casa e o Laranjal, pelo Campeonato da Panorama. Viajo na memória e estou debaixo daquelas traves no início da década de setenta, um garoto de 15 anos, com muitos sonhos na cabeça e o difícil desafio de dobrar a equipe do Pavunense do Rio Janeiro, vice-campeã brasileira da categoria Dentes-de-leite. Aquele embate viria dar à nossa equipe notoriedade exemplar na cidade. Vencemos por um a zero!

Minhas lembranças são entrecortadas pelos cumprimentos de antigos jogadores, meus ídolos do gramado, mas que agora, como eu, também esperam nas arquibancadas o desfile dos novos craques da bola. É assim mesmo, o tempo – essa invenção dos homens – passa, a terra gira elíptica em torno do sol e voltamos nós, agora outros, anos depois, ao mesmo lugar que, se bem observado, também não é mais o mesmo.

Vejo Adãozinho, vejo Bazilto, vejo Amora, vejo Cafezinho, vejo tanta gente! Aquele lá é o Criundinha... estou ao lado do escritor Emerson Cardoso, que também já posou de arqueiro nos mesmos anos setenta. Ouço as críticas pertinentes do José Luiz Portela. Deparo-me também com o Mariquito, um autêntico desportista que conhece tudo do nosso futebol e traz na cachola a escalação dos escretes municipais que habitam o nosso imaginário: Flamengo, Operário, Cataguases, Vasquinho, Bairro Jardim, Granjaria e tantos outros. Vejo Valmir Matos – elevo sereno os olhos e dedico um bom pensamento ao seu irmão Dirceu; vejo o presidente do Conselho do Flamengo, Mário Luquine, agarrado ao alambrado, revelando tímida ansiedade frente ao embate que se aproxima; lá está também o diretor do clube, Cezinha Samor, desfilando garboso dentro de seu vasto bermudão. O estádio está um brinco, digno dos torcedores. Ao longe, lá no vestiário, avisto o histórico Coramba que, ao menor vacilo do árbitro, certamente irá expressar a sua indignação: - Cumé que é, seo Juiz? Sinto falta da banda-fanfarra da Isabel Escolate - Deus, essas pessoas também morrem!! - tristeza, por favor vai embora...Ô lelê, Olalá, pega no ganzê, pega no ganzá! Leva meu samba. Estou na expectativa do Flamengo versus Laranjal. Domingo, 27 de maio de 2007.

Começa o jogo. O Laranjal apresenta um time de bons valores, mas sem entrosamento e condicionamento físico, dando-nos a impressão de ser uma equipe descolada na última hora, com jogadores trazidos a tiracolo, de cidades diferentes, na calada do alvorecer do domingo. O Flamengo revela-se um time bem treinado, com disciplina tática. Ricardinho corre muito e é bom de bola, faz o primeiro de pênalti e destaca-se na partida. Cláudio Cardoso, nos poucos minutos que entra no jogo, destila seu elegante e objetivo futebol, marca o segundo gol. Do outro lado, o goleiro do Laranjal brinda-nos com defesas primorosas e encerra a partida merecedor de bicho-extra, isso por evitar um desastre maior no placar desfavorável ao seu time. Dois a zero para o Flamengo. Mas, tirante um drible alá Garrincha do filho do Bravinho, nós, arquibaldos, sentimos falta das jogadas individuais, aquelas que dão mais brilho ao espetáculo e enchem os olhos da galera. Contudo, valeu a vitória, valeu estar ali, testemunhando a retomada do futebol em Cataguases. O Estádio Rodrigo Lanna recebeu considerável público e a idéia de realizar as partidas pela manhã foi ótima. O Operário já está também em atividade. Espero ansioso um embate entre as duas equipes. É sempre uma oportunidade de se viver boas emoções.
Peço escusa ao leitor pelas divagações. No fundo, ao tecer essas palavras sigo obediente a ordem desse coração-jogador que, depois de vencer mais de três décadas na faina, chacoalhando por muitos milhares de quilômetros de estradas, depara-se com mais uma encruzilhada da existência, mas quer encontrar-se consigo mesmo, dialogar livremente com as coisas mais simples, se possível sob o sol da manhã de domingo, no campo do flamengo, ao lado de seus ídolos. Exatamente como fazia na década de setenta. Um direito adquirido ao custo de muita luta, na qual não faltaram vitórias, dissabores e reais a menos na composição dos vencimentos, como, aliás, acontece na vida dos brasileiros que optam por não ganhar a vida com o trabalho dos outros.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Um Caso do Futebol

A Flauta Mágica

Uma das figuras mais emblemáticas da Vila Leonardo, na cidade de Cataguases, Minas Gerais, foi o Sr. Amador, um senhor que dedicava grande parte de seu tempo ao Vasquinho, o time local, que dava lá as suas alegrias ao povo do bairro.

Como treinador, presidente e incentivador da equipe, o homem é lembrado com muito carinho pelos que aproveitaram de sua convivência."Era uma pessoa serena, mas conseguia energizar toda a equipe com o seu otimismo em relação aos jogos que iriam acontecer".
Sabia também resolver problemas com a sua costumeira boa vontade e criatividade.

E foi assim que um dia, ao perceber que não havia apito para conduzir o treinamento, foi até um bambuzal no entorno do campo e, com um pedaço de bambu, fabricou uma flautinha.Fez com ela o serviço.

Ao me relatar esse episódio, um ex- jogador confessou-me emocionado: - O som daquele instrumento encheu a tarde.

E até hoje ronda o seu imaginário.
(Crônica publicada no livro 50 Casos do Nosso futebol)

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Crônica

Ilustação: Altamir Soares

A MUCAMA DA CATARINA (* )

Ao escritor josé Antônio Pereira que sugeriu o título desta crônica

Quem obrou aquela mulher que fica ali, im(p)une, exibindo as suas partes no espaço público, indiferente ao curioso olhar do povo?
Eu, pessoalmente, acho que ela seja lavra de alguma seguidora de Tarsila, que lá nos idos de mil novecentos e nada aportou aqui no Brasil, pintando quadros e namorando muita gente; Tarsila tornou-se famosa em São Paulo nos anos vinte. Era rica, bem de vida e artista.
Mas, eu trato aqui é daquela negra, retinta, que está lá, sentada no jardim da praça, desafiando todos nós. Sim, porque já se sabe que ela não trabalha em fábrica ou casa de família, não entrega almoço, não cuida de velhinhas e também não pede auxílio a ninguém. Banha-se de lua, sol, sereno e chuva e quando começa a amarelecer devido à ação do tempo, dá-se ao luxo de receber borrifos de tintura e massagem de dois homens, contratados pela Companhia, cujos donos – veja só! - gastam dinheiro para enegrecer sua pele!
O imaginário popular reza que a africana é protegida da Catarina, uma madame do tempo antigo que defendia a vida hedonista. Catarina era relacionada, vivia cercada de gente branca e bacana – inclusive de um coronel; destacava-se das outras mulheres da cidade pela sua elegância estrangeira, que veio de longe, da velha Europa; morava naquelas cercanias acompanhada de diversas mocinhas, num ambiente de espalhafatosa alegria. Quanto ao hedonismo, ninguém, até hoje, sabe muito bem o que vem a ser.
Voltando ao meu assunto, o certo é que a Chica da Silva contrariou a lógica da história, herdando terra em espaço nobre da cidade, por referendo, isso, anos depois de ter aportado aqui em Cataguases, quando apenas alguns poucos tinham dotes e patentes garantidas pelo governo. Esses poucos eram donos das terras, do comércio e da vontade do povo. Não subscreviam diplomas, mas ensinavam disciplina e moral aos seus mandados; dominavam bem as quatro operações básicas de matemática, mas nunca gostaram de dividir.
No que diz respeito à nossa plebéia, outro dia uma pretensa madame, indignada, reagiu à sua audácia ensaiando denunciá-la por vadiagem à prefeitura, mas declinou de seu propósito, logo que soube que a mucama estava ali sob as graças do povo e que o Código de Posturas do Município, apesar de ainda vigor, era um documento anacrônico, em desuso, ultrapassado, fora de moda.
E a negrinha continua lá, sentada, despudoradamente, pés juntos, ancas largas, distraindo as crianças que abarca em seu largo colo, ou suporta brincando dependuradas no comprido pescoço. Não reclama.
Não há quem possa com a beleza da quilombola! Quebra preconceitos e instiga os que se prostram (des)importantes no banco à sua frente, mostrando os seios e revolvendo suas libidos; exibe-lhes também um agudo e excêntrico coque.
Fingindo alheamento, espreita os que seguem no rumo da vila. Possivelmente, futuros amantes.

( * ) Sobre escultura de Sônia Ibling exposta permanentemente na Chácara Dona Catarina, em Cataguases. Texto publicado no livro A Casa da Rua Alferes e Outras Crônicas, Editora Cataletras. R$ 15.

Ilustação: Altamir Soares
O anticandidato

Foi lá pelo mês de setembro do ano dois mil e três. Ele era candidato a vereador e o Encontro Político da noite acontecia num bairro, na periferia da cidade, uma região em que, certamente, não conseguiria ampliar sua votação. O nome mais forte da legenda, com possibilidades reais de eleição, era do trecho e vinha fazendo uma campanha exemplar. Moravam também nas redondezas mais dois candidatos potenciais à reeleição, representando os partidos hegemônicos na cidade. Para o seu bornal, não restariam mais de seis votos, e isso porque, felizmente, montou rancho naquela cercania a família de um de seus irmãos. Mesmo assim, manteve a altivez, para dar a sua contribuição no nível das idéias, elevado. Optou por construir ali algumas formulações políticas básicas, transformar o evento num Momento Pedagógico, de aprendizado coletivo. Se a partir daí viessem mais votos, tanto melhor.

Volto ao início do drama. Ele decidiu-se por colocar sua candidatura a uma vaga na Câmara Municipal de Cataguases depois da leitura de uma crônica de Rubem Alves, chamada Sobre Política e Jardinagem. No texto, o Educador nos ensina que política se faz por Vocação, e explica que a palavra vem do latim “Vocare” que quer dizer “Chamado”, “Convocação”. Mais adiante o autor refuta a idéia do exercício da Política como profissão, jeito de ganhar dinheiro, fazer vida. Esclarece que o vocábulo (Política) vem do grego Polis, que significa Cidade, “um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.” Importava, pois, construir a Polis para que todos pudessem conviver em condições de igualdade, doando-se uns para os outros.

Assim, com o coração e a mente voltados para as lições do mestre, idealizou naquela noite o seu discurso de forma a poder contribuir para o tão falado Processo de Conscientização Popular. Começou tentando convencer os que ali estavam a dar e não vender , trocar, ou perder o voto. Professoral, explicou que não era papel de vereador fazer favores pessoais e que o clientelismo com eleitores não se coadunava com a boa prática da vereança, já que o seu salário seria pago por toda a sociedade. Exemplificou, lembrando os candidatos oportunistas, aqueles que se transformavam em prestadores de serviços gratuitos de transporte de móveis e utensílios, de ex-domicilio em domicílio; distribuição de medicamentos, agasalhos, roupas etc. Esclareceu que vários desses serviços seriam da obrigação do setor público que não pode ser substituído pelos indivíduos. Expôs ao ridículo a falaciosa e egoísta argumentação da necessidade de se eleger o “Vereador do Local”, lembrando que apenas dez cadeiras seriam ocupadas na Câmara e que a cidade possuía, além do centro e dos distritos, mais de quarenta bairros. Assim, quem cuidaria dos interesses daqueles que não tivessem representação na Casa? Alertou que o verdadeiro vereador é aquele que se preocupa com a fiscalização das contas do prefeito; que estuda, idealiza, discute, vota e aprova boas leis para o município; ajuda a organizar politicamente a cidade; apóia as ações voltadas para o seu crescimento econômico e luta para minorar o sofrimento das pessoas, a exclusão social, a partir da melhoria dos serviços públicos.

Resumo final da história: o somatório de sua votação na zona eleitoral não surpreendeu, seis votos. Um do irmão, outro da cunhada e quatro dos sobrinhos. Menos mal que tenha se livrado do constrangimento de ouvir o comentário de uma balzaca da galera. A expressão indignada da mulher ao final daquele discurso anti-eleitoreiro foi exemplar :

- Vê lá se eu vou votar num homem desse !

Início do Blog PequenoVanderlei

Início do Blog PequenoVanderlei