quarta-feira, 27 de maio de 2009


UMA CELEBRAÇÃO DA VIDA

Anderson Braga Horta

Este livro, além de ser um retrato vivido de Emanuel Medeiros Vieira, é uma porção de coisas, das quais uma que outra sou talvez capaz de antecipar, ainda que vagamente, ao leitor destas orelhas. Antes de mais nada (não nos iludam a crispação do texto e a complexidade das idéias que nele se jogam), é uma história de amor, sim.
Dito isso, podemos acrescentar que o romance – trata-se de um romance? – é, em boa medida, a discussão da própria estrutura e a história da própria elaboração. O romance fazendo-se. Curiosamente, sobre ele pontifica Júlia, seu núcleo feminino, dirigindo ao personagem-narrador.
“Nas tuas histórias, a rigor, não acontece nada, é mergulho mental, viagem interior.”
Não é só isso, mas é com certeza isso. É toda uma meditação sobre o quotidiano, o não-senso, a injustiça, a miséria, o absurdo de um mundo – o nosso mundo. O que, sem mais dizer, já nos põe em sintonia com tantos dos outros livros do autor – Meus Mortos Caminham Comigo nos Domingos de Verão, Metônia, O Homem que não Amava Simpósios...
Digamos mais. Que é a história de uma consciência. O repassar de uma vida, numa espécie de juízo. O fluxo de uma consciência que se retrata. Autocrítica. Catarse. Pois é também tudo isso, e comporta mais. Por exemplo (meio de raspão, embora), a orfandade do escritor brasileiro em face de uma imprensa e de um parque editorial alienados.
O estilo se ajusta ao espírito da narrativa (não entremos na discussão sobre se se trata de uma): linguagem coloquial, “natural”, espontânea, apesar das abundantes citações e alusões culturais... e com os requintes das modernas técnicas de narrar, é claro. Esse estilo é Emanuel falando, disparando sua máquina verbas, as palavras atropelando-se como se para não perder a oportunidade da vida. O mais intenso desse estilo é uma página eriçada de profundo erotismo, que deixo ao leitor encontrar (ou eleger).
Outra maneira de ver o livro é como uma crua meditação sobre a vida, seu sentido, seu não-sentido (Será que já não o deixei dito? Se já, fique a reiteração, que, afinal, cai a propósito: também as perplexidade e obsessões do personagem-narrador traduzem-se em repetições – de palavras, de idéias, de citações etc.)
Uma religiosidade latente permeia estas folhas. Às vezes patente, mas antes uma saudade da fé que fé atual. Estarei avançando demais? Se estou, culpe-se o narrador, que se questiona como questiona o próprio gênero literário em que navega.
Seja o que for o livro, “página memorialística, poesia tosca e áspera, contos encaixados” – atira o próprio narrado e, ato contínuo, recolhe as balas -, “é gesto humano de trabalho, aventura do espírito”. Sim, um livro que sua e sangra humanidade. Talvez uma oração – longa e sofrida – pela libertação do homem. Em todo caso, creio (veja-se a página final), uma celebração da vida. Com suas contradições, com seus altos e baixos, com suas glórias e mazelas. E com sua perseverante vontade de ascensão.