terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Um frame além da música - Zeca Junqueira


Durante esse ano de 2008, que vai terminando (e já vai tarde, xô!), eu bati várias vezes na mesma tecla no jornal “Cataguases” escrevendo em defesa de uma Arte, se não autêntica - pois autêntica, em última análise, é até mesmo a fraude (o mundo admite) – eu cutuquei a mesma tecla, repito, em defesa de uma Arte quente e briguenta nesses tempos de desistência em que algo assim é déjà vu.
Questionei o tempo todo: o que nos move além da satisfação em ver um livro redondinho editado, como o “Ilha do Horizonte”, do Vanderlei Pequeno, ou o “Sepukku”, do Hélio Fernandes, que promete? O que nos move além do prazer de uma peça nossa finalmente encenada no palco, como a lírica “Soninha Diamante”, de uma música composta estourando nas paradas de sucesso, o que nos move afinal, o que nos inquieta a tal ponto que nos leva ensandecidos às palavras, às tintas, à música, ao espasmo, ao grito?
De minha parte, o que me leva a tanto fazer é a busca declarada da salvação, de alguma forma; e em nenhum momento me sinto só, em nenhum momento temo a simplicidade da minha escrita, nem a sua “dureza de algodão”, as suas falhas, desde que o sentimento aflore (e reflore), em nenhum momento hesito por desconfiar que ando no caminho errado; então, nele prossigo.
Há um ponto além da poesia, um tom além da tela, um frame além da música que acena pra mim, que baila pra mim, e pra ele eu me dirijo. Como Jim Morrison, que ainda não levei ao palco (mas o farei!), como tantos outros visionários...
Confiram dois depoimentos magistrais que falam disso, quero dividi-los ardentemente com vocês, poetas, escritores, amigos, carpinteiros do universo: o primeiro é do crítico musical Harvey Perr, em matéria para o Los Angeles Free Press, no final dos anos 60 sobre a banda the doors. O segundo é do próprio Morrison, líder dos doors, à mesma época. Ambos falam dessa Arte que dança, e dança, e dança...

Harvey Perr:
“Não tenho a inteira certeza que a minha admiração pelos doors tenha alguma coisa a ver com a sua música. Alguns deles são reconhecidamente fracos, mas considero com que o grau com que se entregam à simplicidade é mais admiravelmente expressivo do que o grau com que outros artistas menores evitam conscientemente a simplicidade. Parece-me que se algum grupo atingiu verdadeiras perfeições poéticas, devia se beneficiar do luxo de cometer grande erros...é como a poesia de Morrison: a maior parte dela é o trabalho de um poeta genuíno, um Whitman dos revolucionários anos 60, mas alguma é embaraçosamente imatura. Não é um crime ir de um extremo artístico ao outro. São, afinal, falhas humanas, e não existe arte se não existir humanidade. Mas, repito, não é, de qualquer modo, nem a sua música e talvez nem mesmo a sua poesia que me fez admirar os doors. Ao contrário, são as vibrações que deles recebo por causa do lugar onde sinto que estão tentando entrar e fazer-nos entrar, um mundo que transcende o mundo limitado do rock e que se movimenta em áreas cinematográficas, teatrais e revolucionárias...Esse tipo de pessoa (Jim Morrison) não tem que ter poesia dentro dela, mas se a tem, quando a faz, devemos olhar para ela mais cautelosamente, levá-la mais a sério. No caso de Jim Morrison e os doors, a agitação vale a pena. Aproximaram-se da Arte, não importando quanto ofenderam, divertiram ou mesmo excitaram os críticos de rock. Os padrões pelos quais a sua Arte deve ser medida são mais antigos e muito mais profundos”

Jim Morrison:
“A sensualidade e o pecado são hoje uma imagem atraente para nós, mas penso nela como uma pele de cobra que um dia será mudada. O nosso trabalho, a nossa atuação, são uma luta pela metamorfose. Agora estou mais interessado no lado sombrio da vida, no pecado, na face escondida da lua, na noite. Mas na nossa música parece-me que estamos a procurar, a lutar, a tentar atravessar para um reino mais limpo, mais livre. É como um ritual de purificação em sentido alquímico. A nossa música e as nossas personalidades vistas no espetáculo estão ainda num estado de caos e desordem, mas talvez já tenham um incipiente elemento de uma qualquer espécie de pureza inicial”.

Feliz Natal ao meu amigo Pequeno, Feliz Natal a todos que visitam esse blog! Que a Arte lhes sirva de banquete! Break on Through!

domingo, 14 de dezembro de 2008

As feridas abertas de Hélio Fernandes


Hélio Fernandes da Cunha vai lançar o seu primeiro livro. Sim, daqueles que têm mais de 49 páginas, sem contar com a capa. Sepukku é o nome do trabalho onde o autor envereda-se por assuntos considerados verdadeiros tabus entre a turba. Hélio diz ter escrito ensaios, mas do lado de cá, eu li tudo como um romance e dos bons; o texto é instigante, provocador e, em verdade, desperta em nós a vontade de chamar o autor numa conversa franca, de homem pra homem, bigode a bigode.

O trabalho traz no seu bojo uma profusão de assuntos polêmicos. Já na primeira orelha, encontramos o significado da palavra que nomeia a obra: Seppuku é o termo que designa o ritual suicida conhecido popularmente como haraquiri. No Japão, a evisceração por Seppuku –literalmente, cortar o estômago – constituía um dos aspectos do código de honra dos samurais. Para eles, a vida é limitada, mas a honra dura para sempre. Assim, ao escolher esta forma lenta e dolorosa de enfrentar o enigma da morte, mostravam absoluto controle sobre si mesmos, venciam o medo e resgatavam sua dignidade.

Recorro ao Machado, lá no conto O Alienista, para tentar explicar e entender a ótica do personagem criado por Hélio Fernandes. Diz o Bruxo do Cosme Velho: A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí, insânia, insânia e só insânia. Isso mesmo, expondo à enésima potência a sua racionalidade, Hélio jogou nas costas do narrador – e bem - um discurso pungente, que o tornou capaz de imergir num enfrentamento a temas tão caros, sem hesitação. Em Sepukku, o cavalo da razão galopou pesado e decidido sobre temas como a infidelidade conjugal, o suicídio, o câncer, o divórcio e, ainda antes da trajetória final, pisoteou temerário o terreno pantanoso dos que optam por viver sob a égide dos mistérios da vida, da não-razão: a comunicação com os mortos.

Há humor na literatura apresentada por Hélio Fernandes. Humor que nos desafia, nos chama para a briga e nos enfia a faca no fígado. É também, contraditoriamente, o humor cáustico, quase sarcástico, mas que revela sofrimento.

Quem é esse Hélio Fernandes? Não é o jornalista famoso na história política de nosso país, o irmão do Millor Fernandes. O Hélio da vez é de Astolfo Dutra. Fez seus estudos iniciais no Colégio Cataguases e depois picou fumo para Belo Horizonte, onde fez Direito pela Universidade Católica de Minas. Transitou pelo Banco do Brasil e encerrou carreira no Banco Central, como Delegado Adjunto, em Minas Gerais. Para continuar “vivendo perigosamente”, presta consultoria a empresas na área de Mercado de Capitais. Imagino que com o descenso das bolsas e com o sucesso que certamente fará com a publicação desse Sepukku, deixará de lado o pesado mundo do capitalismo e ajudará a construir mais e melhores almas humanas, através da produção literária.

O livro, de 207 páginas, é envolvente. Corajoso, o narrador, no capítulo cinco, discorre sobre a questão do suicídio de um filho e deixa perpassar para o leitor a dor do protagonista, diante de seu agudo sofrimento. Ali, na epígrafe da página 147, imprime um excerto do Romance A mulher Desiludida, de Simone de Beauvoir: Se eu tivesse levantado às sete horas... Se tivesse ido beijá-la quando cheguei em casa. Mas busca explicar esse ato humano de pular fora da ponte da vida, recorrendo a Sócrates, filósofo que foi condenado a tomar cicuta por não abrir mão de suas idéias, ou à pretensa dignidade dos japoneses Kamicazes. Ao mesmo tempo, assume a ferida aberta no peito, a incisura imune a qualquer possibilidade de cura, a alma ultrajada, o infortúnio diante de uma tragédia.

Ao final do romance, o personagem reencontra o amor, sentimento que havia perdido ao longo de sua tortuosa caminhada existencial. E o encontro com a paz acontece no aconchego sereno dos braços de uma nova mulher e de uma mulher nova: as duas são uma só! Dito dessa forma, poderia se imaginar que trato aqui de um livro de final folhetinesco. Não é. Da intimidade de onde escrevo esse modesto texto, reflito sobre os perrengues do personagem nas cento e noventa e seis páginas que precederam a chegada de sua Boa Nova. Concluo que, intelectualismos à parte, o bom remédio para as dores da alma é mesmo o encontro com a companheira que se mostra digna e capaz de nos amar, tirar-nos dos abismos em que a própria existência nos empurra. O personagem de Hélio Fernandes, ou Hélio Fernandes, está feliz e o merece. Até porque Machado de Assis – Ele de novo!- já nos avisou:

- Nenhuma dor é eterna.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Um minuto de silêncio - Manoel Hygino dos Santos


(Publicado no Hoje em Dia, de 01.12.2008)

Quando Tolstói inventou aquela história de que, para ser universal, compete inicialmente conhecer sua aldeia, tinha seguramente razão e competência para a afirmação. Primeiro conhecer o umbigo, a gente mesmo, o próprio corpo, para avançar em seguida pelos campos mais amplos. Vanderlei Pequeno, de Cataguases, seguiu à risca o conselho, e prova que foi feliz em seu projeto literário, mais uma vez, ao publicar “Ilha do Horizonte”, pela Editora Cataletras de uma cidade que tem gloriosas tradições e autores prestigiosos no ofício das artes, de um modo geral.
O livro contém crônicas, e “cronos” significa tempo. Os textos são de um tempo para todo um tempo, de um lugar no mapa do Brasil para todos os lugares do país continental. Apresenta uma série de narrativas interessantes, ora cômicas, ora graves e trágicas, ora líricas e sentimentais. Em todas as nuances se dá bem, o que haveria de prever com os livros anteriores de sua lavra. Dos episódios comuns registrados em uma sociedade nasce a universalidade aludida pelo grande escritor russo. De sua aldeia, não tão pequena como as da antiga Rússia dos czares, Vanderlei extrai personagens e histórias que são dos seres humanos, como um todo, e que dão o tom
de singela grandeza dos fatos descritos.
Não sem razão, o nosso culto Ronaldo Cagiano, da mesma cidade e ora instalado em algum lugar de São Paulo, comenta que, antenado com a atmosfera municipal, Vanderlei Pequeno oferece ao leitor mais uma obra de alto nível. São 28 escritos que se lê sem precisar recorrer ao dicionário, o que propicia maior satisfação. É o acontecimento cotidiano, relatado com a linguagem do homem comum,
nesta nação de milhões de comuns. Como o futebol é o esporte favorito da maioria dos brasileiros, Vanderlei Pequeno recorre a contos dessa área, e o faz com consciência profissional de escritor e de torcedor. Ele recorda com graça o José Português, que se esquivando ao balcão, que parece o trabalho preferencial do luso que chega ao Brasil, decidiu dedicar-se ao rádio. Foi o José Português desempenhar-se como repórter de campo em emissora de uma cidade interiorana. Da margem das quatro linhas demarcatórias do gramado, informava a escalação, trio de arbitragem, substituições de jogadores durante a partida, e coisas tais, que perfeitamente se conhece. Terminado o embate, o novo profissional foi cumprimentado pela atuação, pela isenção com que se comportara, pela tranqüilidade na transmissão, enfim por todas as virtudes reveladas. Não terminava, porém, tão belamente a primeira incursão do repórter luso. Chega, então, a infausta notícia de que a esposa do diretor de um dos clubes falecera. Os jogadores se postaram, em forma, para homenagear a defunta, descrito pelo repórter de modo muito especial: - Queridos ouvintes, neste momento, estamos cá no campo de futebol, a ouvir “Um Minuto de Silêncio”.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Um poema de Emanuel Medeiros Vieira

Natal

O menino mítico não submerge,
inunda-me: natal.
Contempla um presépio imemorial,
espreita a eternidade.
Natal: oferendas, missa do galo,
um rei mago,
o menino está em paz.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

ROBERTA LIMA E SEU DISCO DEFINITIVO


Uma beleza o disco da cataguasense Roberta Lima! Roberta é de família de músicos e não dá uma nota fora: manda ver, canta muito, não destoa, tem suingue, voz nasalada na medida ideal e muito domínio da arte do pentagrama. É portadora da carteirinha de sócia efetiva do seleto clube da música juizforana. E passa a régua na conta, acompanhada pelo parceiro e companheiro Dudu Viana, o nosso maestro, filho do Edinho da Guitarra: aquele mesmo, o dono da boa música nas noites da nossa urbe.
Em harmonia com os arranjos de Dudu, Roberta dá o show do primeiro ao último acorde, do princípio ao fim do disco. Começa com Rapaz de bem, samba de Johnny Alf, de 1953, um dos precursores da Bossa Nova; segue cantando em dueto com o guitarrista e cantor Ricardo Dinis, na canção How Will I Know, do cego e visionário Steve Wonder. Dinis, com sua voz semelhante à do astro, destila, junto com o solo de sua guitarra, um solfejo só possível aos músicos de alto nível.
Em Estate(B. Martino e B. Brighetti), Roberta corre o risco de levar a nocaute os fracos diante do amor, os susceptíveis a um samba dolente. Então, que se preparem os espíritos distraídos, os perdidos, aqules que se encharcam de poesia e “se rasgam” nas noites vadias, os arrebatados! Aviso também que, nessa faixa, o piano de Duda transporta Roberta - que canta num sedutor italiano - a um doce intimismo que nos atinge cheio nas vísceras. O solitário solo de sax de Walmer Carvalho, no andar da melodia também é de cortar a alma! Arre!
O disco traz ainda canções históricas, como Upa Neguinho, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, Summertime, de Gershwin e The Way You look Tonight, de Jerome David Kern. As duas últimas, só para causar frisson nos que gostam do bom jazz; Djavan comparece com sua já conhecida Milagreiro; Aldir Blanc e Moacir Luz exportam música do Rio para Minas e levantam a bola para Roberta marcar de placa no samba Paris, de Santos Dumont aos travestis.
Abro o parágrafo para falar do encerramento do disco. Nesse momento, Roberta se supera na interpretação, junto com o instrumental solo, da canção Spain, de um dos maiores do jazz norte-americano: Chick Corea. Sobre a obra, quem me dá a referência é o pianista e amigo, Aloísio Condé: “Há vários intérpretes (solo) da música de Joaquim Rodrigo, que faz parte do Concierto para Aranjuez, que veio a dar origem à espetacular Spain, de Chick Corea. Sei que Joaquim Rodrigo era cego desde os cinco anos e o Concierto é um canto de amor.” Dados históricos à parte, é importante registrar também a performance perfeita da turma da cozinha nos improvisos.
E por falar em cozinha, vamos aos créditos:Bruno Repsold, no contrabaixo; Renato Endrigo, na bateria; Dudu Viana, no piano e na produção musical; Pedro Araújo, na guitarra e Walmer Carvalho, no sax. Galera da pesada! Luciano Tavares deu conta do recado na técnica do som; Marcus Vinícius, o Marquim Banzai, criou o visual da capa e Roberta aparece passando em frente a um portal, deixando escapar furtivamente as cores das formas de seu vestido; cores que se metamofoseiam em um arranjo de uma planta que lembra claves musicais. Na contracapa, a cantora caminha por uma rua deserta e deixa para trás o arranjo como registro e presente por sua passagem, qualquer coisa de criação, o trigo do pão que alimenta e mantém acesa a chama da vida. No caso, pão que é arte musical.
Roberta Lima é só talento e já pode ocupar um lugar na galeria dos bons intérpretes. Seu disco nada fica a dever aos melhores trabalhos nacionais e internacionais disponíveis no mercardo fonográfico. Junto a Dudu Viana, lega ao público uma obra definitiva, daquelas que servirão como referência a estudiosos e diletantes da música. Pena que o seu disco não revele canções inéditas, de autores inéditos. A moça, com a força de sua interpretação e a beleza de sua voz, pode contribuir com a sua parte, na luta para tirar o país do fosso cultural em que se encontra. Os bons compositores estão aí, aguardando a hora de ver seus trabalhos virem a lume, chegarem ao público. Elis Regina fez isso, completando sua trajetória de sucesso e consumando o seu nome como a grande estrela de nossa música. Foi a Pimentinha quem revelou corajosamente nomes definitivos de nossa MPB, como Belchior, João Bosco, Renato Teixeira, entre outros. Esse também é o papel do artista: romper com a mesmice, com a pasmaceira, com a mediocridade geral. Roberta Lima já deu o primeiro passo, gravando o que há de bom, mas já posto para cantar. Agora, está na hora do garimpo, de revirar a terra que é sempre generosa, fecunda e repleta de preciosidades. Vamos lá, Roberta?

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Zeca Junqueira no Teatro Serrador, no Rio


Soninha Diamante
Umas & Outras

A peça “Soninha Diamante, umas & outras” é composta por cinco esquetes que falam de amor, sexo, morte, poesia, massificação e alienação do Ser Humano, etc., tudo com humor e lirismo – e muita contundência. O formato das esquetes facilita o entendimento e o engajamento do público, apresentando personagens, ora tristes, ora engraçados, que certamente cativarão a platéia. O ritmo é cinematográfico.

Na primeira esquete, “Zé Legião do Brasil” caracteriza grande parte dos brasileiros (a maioria), que hoje enfrentam o problema angustiante do desemprego, às vezes resolvido (?) pelo sub-emprego ou pela informalidade. Fica claro que esse estado de coisas é causado principalmente pela informatização dos modos de produção. O humor permeia o texto, mas o alerta está lá: o que fazer com tanta gente desempregada? Ou pior, o que acabará fazendo tanta gente desempregada?!

A segunda esquete, “É-se, então?”, cruelmente densa e questionadora, remete ao teatro de Artaud, que nos avisa que o mundo pode desabar a qualquer momento sobre nossas cabeças. A idéia é levar a platéia à reflexão sobre a precariedade da vida socialmente “arrumada”, que é arrastada de roldão no curso da natureza – e às vezes colocada implacavelmente frente ao dilema da (in) existência de Deus.

“Debutei”, a terceira esquete, é um monólogo no qual o ator conversa e acaba brigando com sua imaginária namorada (inclusive levando uns tapas) logo após sair de uma sessão de cinema. Em evidência (além do humor), um tema atualíssimo: a bissexualidade.

Na quarta esquete, “Soninha Diamante” dá uma lição de resistência e de amor à vida com o seu diamante que não se apaga nunca e resiste à “adultice”, moléstia que, segundo o autor, acomete a maioria dos homens na idade da razão.

Na quinta esquete, “Créu”, predomina a crítica ao estresse a que estão sujeitos a maioria dos trabalhadores das grandes metrópoles (inclusive os de nível executivo), que esgotam suas vidas entre o trabalho e a cama – para dormir! O ritmo dessa esquete é estonteante para dar idéia de que não há escapatória. O personagem Floriano é um refém. O dueto dos radialistas da Rádio Esperança é a base de sustentação da esquete.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Ilha do Horizonte por Manoel Hygino


ANTICANDIDATO (Publicado no Hoje em Dia, 29 SET 2008 )
Manoel Hygino dos Santos (*)
"lha do horizonte" este o mais recente livro de Vanderlei Pequeno, de Cataguases, com o qual demonstra ser grande e bom em um gênero que atrai muitos e consagra apenas alguns. Escrever crônica é dificultoso, principalmente para quem apenas deseja ocupar o espaço no jornal. Os cronistas cá da casa mostram talento e competência, indispensáveis ao bom autor desse tipo de escrito.Vanderlei não é marinheiro de primeira viagem. Três outros livros já saíram de sua lavra. É, ademais, caracterizada sua produção pelo bom humor, tanto quanto pelo lirismo, pelas expressões de solidariedade. Os temas aparentemente banais de nosso cotidiano ganham grandeza.Aliás, o prefaciador adverte exatamente pela maneira de ser e escrever desse autor de Cataguases, que chega aos 51 anos. Antônio Jaime Soares observa: "Crônicas bem-humoradas, como que escritas com aquele sorriso que lhe é peculiar. Contudo, um humor até certo ponto permeado por certa angústia, por exemplo, diante da perda de pessoas queridas, o que leva sua escrita a roçar a atmosfera mais densa do ensaio. Entretanto, ele afirma: "Faço tais ilações sem a pretensão de tornar meu texto acadêmico".O autor observa nesse volume, editado pela Cata Letras, que não se trata de crônicas inéditas, pois publicadas em diversos jornais, a partir de 2002. Este aspecto me parece fundamental à conceituação que se faça dos textos. Eles são perfeitamente moldados ao tempo em que vivemos, os fatos e personagens estão por aí, são vividos e vívidos.A política não escapa à verve de Vanderlei, nem os intelectuais, os artistas, os carroceiros, as mulheres de rua, os campos de futebol. Todos estão na galeria de seus "dramatis persone".São 2 8 criações, que não merecem qualquer reparo. O autor tem noção de escrever, bem, com aquelas idéias matrizes -de princípio, meio e fim. É de uma linguagem acessível, sem ser vulgar; de vocabulário sem adornos desnecessários.Como estamos em tempo eleitoral, recorro a uma das crônicas. O autor conta que, lá pelo ano 2004, apareceu um candidato a vereador na periferia da cidade. Tinha chance de alcançar a edilidade, pois era correto como cuidarão e oferecia um programa de atuação, se escolhido fosse.Em reunião com o eleitorado, abriu-se com toda sinceridade. Explicava que voto não se vendia ou se comprava, dava-se por motivo superior. Condenou o clientelismo, referindo-se à boa prática da vereança.Lembrou os candidatos oportunistas, prestadores de serviços gratuitos, de fornecedores de agasalhos, roupas etc. Alertou que o verdadeiro vereador é aquele que se preocupa com a fiscalização das contas do prefeito: que estuda, idealiza, disc ute, vota e aprova boas leis. Ensinou que era preciso melhorar a vida dos mais carentes, ajudar a organizar politicamente a cidade, eliminar a exclusão social.Veio o dia do pleito. O candidato recebeu seis votos: um do irmão, outro da cunhada e quatro dos sobrinhos. Uma balzaquiana, após ouvir o pensamento do candidato, justificara-se:- Vê lá se eu vou votar num homem desse!

terça-feira, 9 de setembro de 2008


O Mistério de uma Pincelada


Imergir no universo do artista é perigoso tal é a individualidade de cada um. Portanto, nesta matéria, me limitarei a fazer algumas breves considerações sobre o trabalho de Ady Resende, ao meu ver, um ícone de minha geração... falar de nossos ídolos é complicado, temerário.

Quantos ao longo do tempo não passamos por sua sala de aula e guardamos em nós, graças ao seu dedicado trabalho de educador, os conhecimentos sobre artes?

Ady andou sumido por opção pessoal, mas agora ressurge com uma mostra de seus trabalhos. A exposição teve início em agosto e vai até meados de setembro no Instituto Francisca de Souza Peixoto. Pena que não tenha trazido a lume suas criações inéditas.

Ady Resende me lembra os Impressionistas, com suas lutas e desavenças, suas diferenças entre si e com a sociedade; Ady me lembra Camille Pissaro - um senhor de certa idade e de conhecimento artístico fecundo, sempre pronto a atender os amigos Monet, Cezzane, entre outros. Com Ady não é diferente :quando o assunto é arte, há sempre de sua parte, a disposição para uma boa prosa!

Um homem simples no seu mundo, dono de pinceladas bem acabadas, com destaque para a preocupação impar com as cores. “Os artistas hoje não querem mais misturar as tintas”, observa. Isso demonstra conhecimento, palavras de quem descarta os modismos e acredita em si mesmo como criador.

Uma das características do Impressionismo é a busca do belo mas, nas telas de Ady predomina o mistério, deixado ali propositalmente, revelando a influência do Surrealismo(o sonho, o irreal de Breton ou Dali). Nosso artista não fecha as portas de sua criação nem mesmo para o expressionismo (Munch com sua solidão) quando pinta figuras , alongadas, enigmáticas, solitárias, numa busca desigual dentro de si: um mundo real ou não, podendo ser da figura, do quadro como um todo ou do próprio artista. O importante é que a obra faz com que o espectador observe com toda a estranheza no olhar, sem fugir de si mesmo e pense, pense muito. O mais interessante é que as telas do mestre são construídas com a delicadeza das cores em pinceladas sutis, sobre temas que enlevam e fazem-nos mais humanos.

Conhecendo as obras de Ady Resende, com certeza você também irá conhecer o homem contido em cada figura, em cada cena descrita pela forma, cor, e pelos pensamentos ali traduzidos. Como bem diz o nosso professor: “numa obra tudo tem que estar no lugar certo, mas deixando transparecer sempre o mistério das coisas, do mundo, para não perder a graça, o nome de arte.”
Assim é Ady Resende.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

The End para os nossos sonhos? -Zeca Junqueira



Acredito que Vanderlei Pequeno é hoje o mais interessante escriba de (sobre) Cataguases. Ele mexe e remexe na cultura popular, que é a que de fato dá identidade e faz a história de uma cidade – ou pelo menos escreve os seus melhores capítulos. Se juntarmos tudo que ele produziu até agora, teremos um belo painel dos acontecimentos mais lúdicos da cidade. Muita gente boa que pintou e bordou por aí, muito da memória de Cataguases, com seus mineiríssimos casos e causos, está salvo pelo registro do nosso bravo cronista – agora atacando também no vídeo, junto com o músico Emanuel(Aero)Messias, com seu belo trabalho de entrevistas filmadas com antigos craques da pesada do futebol Cataguasense, todos até então esquecidos.

Seus textos sempre mexem com a gente. Tem uma crônica intitulada Nas matinês do cinema do Nelo, no seu mais recente livro, Ilha do Horizonte, que me emocionou pra valer. Aquelas matinês nos anos 60 foram para muitos de nós uma deliciosa aventura de criança que vai durar a vida toda, foram um delírio em cima do delírio que era a nossa infância naquele “tempo da paz e da benção, naquele tempo em que andávamos pela tarde e entendíamos a luz”.

Tem outra nesse livro que também me balançou: em Duas Marias e uma Luíza, ele conta sobre a amizade entre sua mãe e uma vizinha: “Meu pai instalou um portão na divisa de nossas casas, evitando que o muro existente impusesse qualquer obstáculo na convivência entre as duas famílias. E assim foi até os últimos dias de minha mãe, dona Conceição”...Que tempo bom, Vanderlei, quando seu pai, seu Dorico, não fazia versos pregando a derrubada de muros, fazia logo um buraco no dito cujo, quem quisesse que atravessasse, e viva a amizade!

Dona Maria, Dona Conceição Seu Dorico, todos já encantados!, aproveitemos então o portão aberto no tempo por você e entremos no cinema do Nelo para nos (re) encantarmos novamente: sua crônica resgata momentos ímpares, como aqueles em que achávamos dentro do cinema pedaços de fitas com cenas proibidas que nos eram cortadas, cenas que como sonhos cristalizados iam direto da tela para o fundo dos nossos bolsos, como o da troca de gibis antes da sessão, na porta do cinema (eu me amarrava nos do Kid Colt), como o momento em que éramos chamados à “saliência” pelas imagens das musas que você tão bem recordou: Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida, Rossana Podestá, Sofia Loren – faltou citar a Suzane Pleshett (o lourinho Troy Donahue dava trabalho à libido das meninas) e outras tentações que inspiravam nossas fantasias num tempo em que era bom transgredir, mesmo sob a ameaça de que cresceria pelos nas palmas das mãos dos onanistas mais empedernidos.

Apagavam-se as luzes (elas davam uma piscadinha antes, lembra?), explodiam gritos e assovios, e tome os faroestes do Audie Murphy, John Wayne e Gregory Peck, os capa & espada (Scaramouche!), as gargalhadas com Charlie Chaplin, Cantiflas, os três Patetas, Norman, Oscarito e Grande Otelo, a tensão com 007, Flint e Phantomas, o tesão com as musas já citadas, os filmes-cabeça - o nouvelle vague, o “cinema novo” (que pra nós era mesmo o Cine Edgard) trazendo o vanguardista doido Glauber Rocha, ninguém entendia nada, mas assistíamos todos, até sermos brindados ao longo desse desfile de belas imagens com o estilo arrebatador de Sérgio Leone, que segundo o crítico Richard Schiekel, transformou (em parceria com Ennio Morricone), seus westerns em ópera, alternando grandes trechos sinfônicos e coro (as paisagens amplas e profundas que marcam seus filmes) a belas árias (os closes). Clint Eastwood, o protagonista da trilogia do homem sem nome, é hoje um dos mais geniais atores e diretores hollywoodianos. Quanta arte víamos, quanta “arte” fazíamos!

Outra bela lembrança na sua crônica são as nossas primeiras investidas adolescentes sobre as meninas da Praça Rui Barbosa, quando elas passaram a nos atraiar mais do que as sessões do cinema do Seu Nelo. Como eram singelas, meu Deus!, por onde andam aquelas meninas?, todas tão belas em seu florescer, que durava mais naquele tempo, espero que não tenham ficado feias, que não tenham desistido, nenhuma delas, torço para que não tenham se tornado infelizes porque frustraram seus amores e seus sonhos.

Negociar com o Seu Nelo o ingresso mais barato depois que o filme já havia começado foi prática duradoura, como você conta, e quando não dava para negociar nada porque estávamos completamente lisos, o caminho era mesmo por baixo, lá pela Avenida Astolfo Dutra, onde pulávamos o muro e entrávamos pela fábrica de macarrão até chegarmos ao cinema. Às vezes o vigia ou o “cicatriz” nos pilhavam e era uma correria desesperada de volta pela fábrica para escaparmos do vigia, que era mau de verdade e esfolaria quem fosse capturado. Aqueles feitos valiam por um filme de suspense do Hitchcock! Mas a marcha do progresso é avassaladora e você também evoca tristes lembranças, como a estréia nas telas grandes do cinema pornô e o fechamento do cinema do Seu Nelo, causado principalmente pela chegada do vídeo-cassete. Nessa altura, muitos de nós já havíamos partido para outras cidades, apresentando os primeiros sintomas de adultice, moléstia grave que acomete os homens na idade da razão.

Viemos longe, estamos em 2008, e agora, “aonde vamos essa noite, Walt Whitman?”. Talvez a um Cine Magazine qualquer, num shopping solitariamente lotado, ou acabaremos sentados na sala de casa diante de uma tela fria de TV assistindo um filme em DVD, com gente passando pra lá e pra cá, acendendo luzes, e nós ali, às vezes de pijamas, sem pedaços de fita no fundo do bolso e sem a praça a nos esperar após a sessão, com tudo de bom que ela nos oferecia. E o que é ainda mais doloroso: nessa sessão doméstica de cinema onde tudo é bomba, entre um bocejo e outro, não percebemos que largamos a mão da nossa melhor namorada, que está ali ao nosso lado, ela que veio conosco de longe, lá do escurinho do cinema, não percebemos que pouco a pouco vamos nos cegando com a luz estourada de nossas salas-de-estar e deixando de enxergar um ao outro.
Cinema do Seu Nelo, Cine Machado, Cinema Paradiso!, onde outrora retumbaram hinos, estamos órfãos de nossos heróis, de nossas praças, de nossos velhos amigos das matinês, de muitas de nossas meninas, de nossos cinemas de sonhos que hoje, como disse o cronista Zé Antônio Pereira em uma de suas tiradas geniais, estão quase todos nas mãos da Universal, que não é Pictures, e onde se reza a tótens e cujo ingresso nas sessões infernais de descarrego custa os olhos da cara (ou da alma?).

Ainda há tempo para um filme qualquer de amor ou de aventura, para um beijo na namorada com trilha sonora (quem sabe Sounds of Silence?), ainda há tempo para um pedaço de fita escorrer para o fundo do bolso das nossas calças, agora compridas demais, ainda há algum ingresso sobrando para nós ou alguém disposto a negociar conosco uma entrada meio atrasada para uma última sessão de cinema?

Vanderlei Pequeno, escriba da Cataguases da minha saudade, ainda há algum lampejo de criança em nós, ainda há algum arroubo que nos faça esquecer a adultice e trilhar, já que a porta não cede, o caminho por baixo em busca de sonhos, mesmo com medo de que os vigias do nada nos peguem e que o caminho nos leve a lugar nenhum?

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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Espaço Aberto para Emanuel Medeiros

POR QUE ESCREVEMOS?


Começamos escrevendo para viver e acabamos escrevendo para não morrer.

Para quem edifica palavras mal rompe a aurora, escrever é inadiável e urgente, mesmo que nada externamente nos obrigue a isso. Mas a necessidade interna é visceral, orgânica, chama e fogo, flecha, algo colado à pele.

Não conseguimos escapar desse apelo.

Escrevemos para perdurar, para vencer a poeira do tempo, para despistar a morte, para regar nossos fantasmas e (por que não?), para amar e ser amado.

A literatura é o refúgio da sinceridade num mundo de pose.

“A literatura é um apelo de fogo, onde mora meu desespero, a minha inquietação e o meu paraíso”, escreveu alguém.

Eu sei: tento escrever um hino de amor à palavra.

Qual a maior viagem (interior) que podemos fazer, senão aquela que é um mergulho no livro, nesta criação de outros mundos, nessa peregrinação às áfricas interiores?

“Se o mundo dos objetos palpáveis e vida prática, não é mais real que o mundo das ficções, dos sonhos e dos labirintos, então pode ser que o autor de artifícios verbais tenha mais direito à condição de demiurgo que qualquer outro candidato”, escreveu Samuel Titan Jr., falando sobre Borges..

Hoje, a realidade chamada virtual fica sendo mais importante que o humano propriamente dito.

Uma personalidade não aparece porque é boa, mas é boa porque aparece.

Vivemos uma mudança de época e não uma época de mudanças.

Ou está inapelavelmente decretado que não há nada mais a fazer, que o destino já rabiscou todos os destinos?

Queremos um modelo de consumidores ou de cidadãos?

Aceita-se passivamente um mundo onde são as coisas que comandam e não os valores.
Queremos pessoas abúlicas, inertes, numa globalização onde impera a uniformidade e não a igualdade?

A literatura é um sonho do eterno. Sua morte tem sido decretada diariamente.

Mas por que ela continua tão viva?

Pois há dentro do homem uma sede de infinito que nenhum modelo meramente mercantil pode saciar.
Emanuel Medeiros é escritor

sábado, 21 de junho de 2008

Espaço Aberto para Zeca Junqueira


“Sejam realistas. Peçam o impossível!”

O jornal O Globo do dia 18/05 (domingo) dedicou nada menos que nove páginas do seu Segundo Caderno a falar de 1968, ano-chave da contracultura no mundo. Passaram-se 40 anos do ápice do movimento que queria derrubar o establishment a golpes de arte. Aonde chegamos? “A contestação já é parte do sistema, as pessoas não se reúnem mais, o mundo se globalizou, Deus está morto e salve-se quem puder”, responde lá o jornalista Toninho Vaz, autor das biografias de Torquato Neto (o Anjo Torto) e Paulo Leminsk (para o qual “morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma”).

Ao ler avidamente a matéria, lembrei de outra, “Sobriedade demais”, da colunista Martha Medeiros, publicada na Revista O Globo de 16/09/2007, que me surpreendeu então como uma alvissareira voz no meio do silêncio produzido pela falência de tantas utopias. O ano de 1968 esfumaçou-se, perdemos nossas convicções e a maioria de nós mudou o tom e é transmissora passiva de ruídos de coisas geladas, mecanizadas, chipadas, vazias de tudo para garantir a aceitação incontestável do reinado do bezerro de ouro. Essa maioria é composta de arautos do nada.

Martha cita oportunamente Hemingway, Bukowski, Dylan Thomas e cobra de si mesma o seu quinhão de desatino, o seu pileque por trás do texto, o LP arranhado soltando jazz de uma antiga vitrola enquanto uma velha e imaginária Remington substitui o computador e importuna tamborilando em voz alta o que é preciso tamborilar: dor, esperança, desespero, rebeldia, amor – arte!, e que se dane depois a ressaca, depois a gente acerta.

Sabiamente, Martha diz que está na hora de vasculharmos a cesta de papéis em busca do rascunho jogado fora só porque é rascunho - será que a vida rigorosamente passada a limpo não se traduz mesmo em rascunho, em aspereza, em intensidade proporcional ao sangue que ela contém? “Os escritores deste novo século já não se suicidam, a Sylvia Plath de hoje faz mamografia, a nova Ana Cristina Cesar faz pilates, o William Burroughs do século XXI precisa parar de beber por recomendação médica”, diz a colunista.
Esse súbito engasgo que Martha Medeiros sofre e nos repassa numa revista light de domingo, facilmente digerível com o familiar almoço do dia, me instiga botar a cara à mostra, já que “no meio desse quadro diluidor...há uma faixa de pessoas com fome de transcendência, porque a vida é pouca e nem todos agüentam o nu e o cru da falsa realidade dos reality shows”, como aponta o poeta Ferreira Gullar, em entrevista concedida ao Globo que fala de 1968.

Insurgir-se nesse “admirável mundo novo” e correr o alto risco de ser jogado como um rascunho pornográfico na lata de lixo da “arte” ou continuar fazendo mééééééé entre o grande rebanho de “artistas” pós-tudo enquanto o mundo desaba infecundo sobre nossas cabeças disciplinadas e vazias? Eis o dilema dos verdadeiros criadores postos “no paredão” pela assustadora capacidade de banalização da sociedade do espetáculo.
Que saudade de 1968, 1969, 1970!...
Segue o meu manifesto (atualíssimo!) pela passagem dos 40 anos daquela data, quando os hippies e a nossa geração do desbunde ousaram colocar a imaginação no poder.
Make love, not war.

Arte é rebelião e gozo
A arte é essencialmente transgressora e seu principal atributo
é promover o inconformismo e a não-aceitação de injustiças.
Arte é anti-ambiente, é releitura e reescritura do mundo,
inclusive no plano social.
A experiência da arte é a experiência da beleza e a beleza
liberta e traz descanso.
A arte não é moralista, é ética, portanto intuitiva, e
só pode ser provada por homens verdadeiramente livres.
Os que estão aprisionados e pela arte são tocados
passam a enxergar as grades e os muros que os cerceiam e
contra eles põem-se a obrar.
A arte exposta nos museus oficiais para a morna gente
mais preocupada com os costumes do que com a liberdade,
mais ciosa com a moralidade do que com a dignidade,
estaria mais adequada e surtiria mais efeito nos corredores
das penitenciárias, nos prostíbulos e
nos guetos onde a miséria, a loucura e o crime
não têm contraponto.
Van Gogh no túnel escuro e sem esperança das prisões
seria janela ensolarada por onde fugiriam todos os olhares.
Ao amanhecer e ao anoitecer, todas as prisões do mundo
deveriam tocar Mozart, Mahler, Beethoven para aliviar
as mentes atormentadas.
Pela música, os corpos continuariam com os carcereiros,
as almas, com a paz.
Nas igrejas não deveria haver santos de conveniência
mudos nos altares, mas poetas em carne e osso
bradando poesia no lugar da cantilena dos padres.
E nos hospitais, nos tribunais, em todas as casas de
punições e dores
a bondade, suprema obra de arte,
deveria estar sendo escrita, pintada e orquestrada,
exercida sem parar em todas as cores, letras e sons.
O verdadeiro artista caminha descalço sobre brasas e
delas só escapa para prosseguir sobre o fio da navalha
- sempre descalço.
A arte não é propriedade de ninguém e
só existe como rebelião e gozo.
O resto é rendição e conformismo.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônica: A morte do Zé Sarney


O anúncio no rádio ficou por minha conta: “Comunicamos com pesar o falecimento de Ivo Pereira Barbosa, cujo sepultamento se dará hoje, dia 04 de junho de 2008, às 15 horas, no cemitério de Dona Euzébia. O féretro sairá da capela mortuária daquela cidade. A família enlutada agradece a sua presença e solidariedade”.

Tive que incluir no texto o apelido do finado: Zé Sarney. Os possíveis ouvintes da emissora jamais poderiam saber a quem se referia a Nota de Falecimento, se lá constasse apenas o nome de pia.

Ivo, o nosso Sarney, levava essa alcunha porque tinha um bigode parecido com o do senador lá de Brasília; daqueles que partem das ventas e quase lambem a borda do queixo. Foi também um contador de histórias, dono de uma prosa onde predominava o patético, do nascer ao desaguar no nosso imaginário.

Mas não veio do Maranhão, nunca passou por perto de um Congresso ou Academia de Letras e tampouco sabia lá o que vem a ser um clã nordestino. Excluído, jamais chegaria a Presidente da República! Nunca enricou e diferente do que ocorrerá com o político, morreu sozinho no pronto socorro municipal; sua família não mereceu do Estado nem mesmo uma informação mais respeitosa sobre o que motivou a sua morte - na Certidão de Óbito consta apenas que faleceu em conseqüência de “Causa Indeterminada”. Indignação!

Nasceu na cidade de Manhuaçu há cinqüenta e um anos atrás, filho de João Pereira Barbosa e Alícia da Silva Barbosa. Passou boa parte de sua existência em Dona Euzébia. Lá, mantinha alguns familiares e um amigo carroceiro de apelido engraçado: Pandareco. De lá guardava boas e más lembranças. Entre as boas, falava das festas de casamento que freqüentava ainda na juventude; já a recordação da perda da casa onde morava mexia nos seus nervos e anuviava-lhe os olhos. Para lá voltou carregado ao reencontro com a mãe, de quem confessava sentir muita saudade. Seu pai, também falecido, era viajante.

Há um bom tempo morava em Cataguases. Costumava marcar presença nas rodas de conversa dos taxistas, funcionários de sacolões e frentistas dos postos de gasolina. Amigo e assessor do José Almir, programador musical da feira de artesanato, gastava lá as suas manhãs de domingo. O conterrâneo, Ildeu, era seu porto seguro, dele recebia e considerava bons conselhos.
Com a sua parca renda de aposentado pelo INSS, conseguiu organizar com gosto sua casa: dependurou na parede da sala alguns quadros primitivos, esticou tapete no chão e comprou um potente aparelho de som. Na estante, ostentava orgulhoso uma montagem fotográfica onde aparece em meio corpo portando a faixa presidencial! Compartilhava a audição de suas músicas sertanejas e românticas com os vizinhos e os passantes do final da Avenida Astolfo Dutra, onde morava. Vivia sozinho, mas vaidoso.

Caminhou comigo até a última primavera, ocasião em que revelou acreditar na sua popularidade e admiração pública. Previa inocente e engraçado no trocar das pernas: “Quando eu morrer, Cataguases vai decretar feriado nacional”!

Às vezes, dialogava com criaturas que nós, seres normais e adaptados à vida presente, não conseguíamos vislumbrar. Gostava de chuva - por várias vezes o flagrei falando sozinho, na porta de casa, apontando o dedo para o sol poente; chamava as águas que na curva do céu, ainda nuvens, apareciam-lhe feito “rabos de galo”.

Por razões que fogem ao nosso entendimento, deixou tudo de lado para enfrentar o que dizia temer: a morte. Decidido, Jejuou do arroz-com-feijão e por muitos dias limitou seu alimento ao extrato de cevada e lúpulo. Vagou desvairado pela cidade. Na tontura de suas horas, desconsiderou os limites do corpo, como se um espírito atormentado não precisasse também de um “cavalo” pra se manifestar!

Perdeu a batalha no último três de junho, terça-feira. Embora fosse conhecido, o féretro foi acompanhado por não mais do que vinte pessoas. Imagino que muitos, ao tomarem conhecimento de seu passamento se apiedaram. Outros, como bem disse o poeta Manuel Bandeira, “estavam todos voltados para a vida, absortos na vida, confiantes na vida” e não se deram conta da fatalidade.

Nas últimas palavras, dou o testemunho da retidão e honestidade do meu amigo. Ivo tinha nome limpo na praça, fazia questão de pagar em dia as suas contas. A propósito, antes de entrar em agonia, enviou-me, através de sua irmã, certa quantia para que em seu nome eu liquidasse uma prestação numa grande loja. Com a pressão em queda livre, partiu.

Não paguei o carnê. Devolvi o dinheiro à família enlutada e às voltas com as despesas do funeral. Que seus pretensos credores, se tiverem coragem e o Código de Endereçamento Postal, encaminhem cartinhas de cobrança ao Paraíso, aos cuidados de Deus. O endereço é Rua dos Pobres pelo Espírito, onde Zé Sarney, liberto, foi ser feliz.

domingo, 4 de maio de 2008

Espaço Aberto para Emanuel Medeiros

(Abrimos espaço para o poeta Emanuel Medeiros. O homem é de Florianópolis, mas morou por 10 anos em Porto Alegre, onde fundou cine-clubes e grêmios literários no antigo secundário e na universidade - UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Participou ativamente da luta política no Movimento Estudantil Universitário. Amargou a passagem pelo " inferno na Oban e no Dops". Mas não se dobrou. Hoje, continua seu trabalho em favor da vida e tenta conhecer um pouco do coração do homem. Considera-se um "Mascate Cultural". Ao poema!Pequeno)

DESTERRO *
Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.

O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.

O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.

Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.

Desterro inunda-me:
outrora/agora.

* Nome antigo de Florianópolis-SC

segunda-feira, 24 de março de 2008

Procurando o Moreninho

“O chicote é a figura da deformidade
e o cativeiro deforma o homem. “ ( * )

Na última sexta-feira, dia 21, estivemos comemorando o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. A data foi instituida pela ONU devido ao Massacre de Sharpeville, na África do Sul, em 21 de Março de 1960. Veio daí a idéia dessa crônica.
Se a protagonista do fato que vou contar morasse na Bahia, certamente, seriam outras as minhas palavras; possivelmente estaria aqui escrevendo sobre música, dança e alegria.. Como diria Caetano: “Negro é lindo!”. Os baianos saíram na frente, assumindo a sua negritude. Vão, aos poucos, consumando uma nova realidade social, livre do preconceito e do racismo. Extinguem assim a idéia de “Cor da Alma”.
Fizeram mais: assumiram – corretamente - a cultura como um valor libertário. Cantar, rir e dançar, libertam e excluem qualquer necessidade de turra, cara feia ou violência. Na Bahia, as notas musicais que constroem melodias e harmonias embalam também o movimento do corpo; a liberdade é a consequência natural do desprendimento, do bom humor e bem-estar coletivo. Ser racista e preconceituoso na terra de Painho e Mainha é feio que dói!
Mas a nossa personagem não pensa assim. Carrega na carcaça e no imaginário o peso dos quase quatrocentos anos do jugo da escravidão, essa prática abjeta que permeou a vida brasileira ao longo do período colonial, avançando até o final do império português.
Não sei o nome de nossa artista, nunca a tinha visto. Estive perto dela apenas alguns minutos, tempo suficiente para colher o material com o qual alinhavo este texto. Mas já sei que se trata de uma alma ingênua, vítima da nossa história de opressão. Uma alma gestada sob o signo da dominação branca, que só consegue reconhecer a presença de Deus na alvura das coisas, como se Deus tivesse cor, como se Deus fosse o protótipo ou representante dos homens que dominam.
O que narro a seguir, servirá de exemplo prático para ilustrar muito do que expus até aqui, abusando de sua paciência.
Duas horas da tarde na tórrida Cataguases. Rita Bento, militante do Movimento Negro, e eu, aproveitávamos a sombra num dos bancos de Santa Rita de Cassia. Falávamos de amenidades, das muitas mentiras e algumas relativas verdades da política, quando fomos abordados por uma “mulata”, ela mesma, a nossa artista:
- Eu estou procurando o Dagoberto... é um cara que trabalha com fulano de tal, é segurança...
Rita Bento ainda franzia o sobrolho na tentativa de buscar na memória a figura pretendida pela mulher, quando ouviu:
- É um moreninho que nem você, moça!
Aguerrida militante, digna de Zumbi dos Palmares, percebendo a fragilidade daquela alma, Rita redarguiu, questionando com certa dureza:
- Epa, e quem é que lhe falou que eu sou moreninha? Eu sou é negra, minha filha!
Mas nossa personagem, compassiva, não entendeu o discurso da lutadora:
- Não fale assim, você não é negra!
- É claro que eu sou negra, olha aqui a cor da minha pele, você tem problema de visão? Sou negra com muito orgulho. N E G R A!, e do Movimento... das bonitas, vê!? Se você não sabe, negros somos todos nós que viemos da África.
A “mulata” não entendeu muito a lição de consciência étnica da Rita Bento e ao tentar se retratar, piorou ainda mais a situação de constrangimento:
- É mesmo, né gente?, tem muito branco que não come no prato que o negro come!
Rita, já escaldada com a visão preconceituosa das pessoas e com consciência da realidade histórica que vivemos, relevou com humor:
- Procura a sua informação no Almoxarifado da Prefeitura. Fica no final da avenida... na boca do Léo. Lá eles conhecem todo mundo, inclusive os moreninhos!

* Trecho do discurso de Basílio Machado, proferido em 1885, para homenagear José Bonifácio.


segunda-feira, 17 de março de 2008

Resenha Luiz Lopez


(O artista plástico e professor Luiz Lopez apresenta a sua visão sobre o meu livro Ilha do Horizonte, a ser lançado em julho.)

O Pescador de Pérolas

Em “Ilha do Horizonte”, novo livro de Vanderlei Pequeno, o autor pesca crônicas no horizonte da memória, plenas de humor, saudosismo, lirismo, paixão, dor, política, crítica social, empatia com os desvalidos e com os antigos craques da bola; enfim, histórias que constroem uma rede de ocorrências locais dessa ilha, na verdade, microcosmo, chamada Cataguases, a qual povoa seu horizonte de escritor, e que nos permite uma analogia panorâmica com o Brasil.
Que cidade não teve ou tem seus personagens pitorescos que moram no imaginário de seus habitantes? Que povoado não guarda suas histórias engraçadas, ou comoventes, seus tipos, os quais desafiam as normas estabelecidas? Quem nunca ouviu falar dos “boleiros”, hoje esquecidos e abandonados, a driblar sua vida miúda, num mundo cada vez mais desumanizado?
Pois Vanderlei Pequeno, cronista cataguasense, apanha essas e outras prosas, resgatando a cor local, deixando-nos o testemunho de um tempo, de situações e pessoas comuns, para nosso conhecimento e deleite. Dono de uma linguagem fluente, simples como a água do rio que circunda sua ilha, nem por isso simplista; porém, sem descuidar dos diálogos intertextuais, com referências a filósofos, educadores, músicos, escritores e poetas que enriquecem sua escrita, como se o autor nos fizesse um convite para navegarmos também em outras águas – no oceano das obras dos mestres, sempre prontas a alargar nossa visão de mundo.
O escritor está continuamente guiando-nos em sua pescaria de casos na Ilha do Horizonte. E podem estar certos de que, na companhia desse pescador-de-pérolas, a rede de acontecimentos e situações estará sempre cheia, deixando viva na nossa memória a imagem dos que teceram e tecem seus dias nesse emaranhado de fios-fatos que forma a complexa cadeia de nossas vidas.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Ilha do Horizonte

(No próximo mês de abril eu vou estar lançando um novo livro que vai se chamar Ilha do Horizonte. O Zeca Junqueira leu os originais e cometeu a gentileza de escrever essa belíssima matéria sobre o trabalho. Compartilho contigo. Um abraço.Pequeno)

Como um menino

Extra! Extra! Extra! Vem aí o novo livro do craque Vanderlei Pequeno: Ilha do Horizonte. Mais uma vez vamos mergulhar num universo de simplicidade e graça, e por que não?, de lágrimas para os mais saudosistas; mas anotem aí, lágrimas das boas, daquelas que lavam e refrescam a alma.
Eu li os originais do livro, que me conduziram numa espécie de caminho de volta pra casa, varando o tempo e o esquecimento, até àquela rua mineira da minha infância, até hoje rua do esperto do Vanderlei Pequeno.
Conheci as duas Marias e a Luísa da sua crônica, elas também povoaram a minha meninice. E como não podia deixar de ser, eu fazia parada obrigatória na Papelaria Real, e como o Vanderlei Pequeno, ficava por lá ouvindo os discos mais novos das paradas de sucesso, tirando uma casquinha do som, enquanto conversava com o Bastião, que num carnaval daqueles, muito doido e animado, mas já sem dinheiro, trocou uma camisa do flamengo que vestia como fantasia por uma última pinga na Taberna do Embalo. E lá se foi sambando pela Praça Rui Barbosa.
Quanto ao Cine Machado, meu Deus!, tão bem retratado na sua crônica “Nas matinês do cinema do Nelo”, o que dizer sobre ele? Ainda há tempo para um filme qualquer de amor ou de aventura, para um beijo na namorada com trilha sonora (quem sabe Tema de Lara), ainda há algum ingresso sobrando para nós ou alguém disposto a negociar conosco uma entrada meio atrasada para uma última sessão de cinema? Não, não há, que pena, a censura velada desse mundo coisificado nos bloqueou de vez.
Mas sai fora, xô!, nada de tristeza que Vanderlei Pequeno não é disso! Brincando com nossa emoção, ele escreve como um menino, sem medo da simplicidade, do riso fácil, da gargalhada solta. As suas palavras não estão “abandonadas, escorregando pelas paredes, soltas no inferno, esquecidas, caindo na noite”, como as de sofridos poetas: elas estão soltas e nos levam pela mão para a luz do dia, para os campos de futebol, para as matinês, para os quintais (quando ainda os havia), elas nos levam para o lúdico. Ah!, Vanderlei, quem me dera que a sua fosse também a minha escrita, que sejam minhas as suas palavras, que mesmo quando falam sobre perda, como a morte de sua mãe, acabam desembocando mesmo é na vida: “minha mãe, dona Conceição, que, por coincidência (?), está sepultada em jazigo situado em frente ao de sua terna Comadre e amiga. Enfim, vizinhas para sempre”.
Ilha do Horizonte forma uma trilogia com 50 Causos do Futebol e Casos e Acasos, livros que guardo em minha estante junto aos que me são mais caros. A Casa da Rua Alferes e Outras Crônicas, que ele divide com os bambas Zé Antônio Pereira, Toquinho e Zé Vecchi, também está lá, todos a postos, como antídotos contra a adultice. De vez em quando constato: outrora, em algum lugar, a vida correu solta enquanto retumbavam hinos. Já abri espaço lá para o novo livro do Vanderlei Pequeno.
Meu caro Pequeno, já se vai tempo, nós nos conhecemos há quase 50 anos. Então eu te peço: continue brincando com as letras como os meninos brincam com a bola, continue nos lembrando que escrever não é sinônimo de sofrer, como muitos acreditam, continue a nos chamar em voz alta à nossa porta (lembra-se?) como você fazia quando era criança nos convocando para as brincadeiras. Prometo que eu continuo atendendo ao seu chamado.
Te devo uma por esse novo livro, que aguardo com dedicatória e tudo.
Um grande abraço, escritor.

Zeca Junqueira, Rio, 14/02/2008

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Três histórias

Para começar o ano de uma forma descontraída em sua companhia, conto, a seguir, alguns casos que andei recolhendo ao longo do vai-e-volta de minhas andanças por esse mundo de Deus.
São três episódios que denunciam o uso indevido da nossa língua; exemplos de mau uso das palavras e formulação de frases que deságuam em desfechos curiosos e engraçados.
Esclareço: não é meu intuito diminuir ou fazer juízo de quem quer que seja. Os personagens aqui são todos fictícios e essas linhas são pura invenção de mentes criativas e bem-humoradas, das tantas que existem neste nosso país.
Aproveite as férias, viaje comigo pelo imaginário popular do brasileiro. Aqui eu procuro revelar alguma coisa da face ingênua e singular de nossa gente que só mesmo através da oralidade pode vir a lume. Vamos lá:

Verborragia

A língua portuguesa é riquíssima e nos oferece amplas possibilidades de expressão do nosso pensamento, da nossa mensagem. Uns se expressam através da literatura, outros através do cinema, do teatro, da televisão e outros trabalham com o rádio, até hoje, um dos maiores veículos de comunicação existente. E foi exatamente numa locução esportiva que um radialista mineiro exagerou na tentativa de informar ao público que o gramado não reunia condições de receber aquela partida de futebol:
-Meus amigos, choveu muito esta tarde e o gramado está praticamente impraticável para a prática do futebol.

Assinatura não confere

Sebastião Jorge Pinto Ferreira da Silva, nome de pia, perigoso demais pra dar personalidade àquele caboclo lá da cidade de Inaraug, no estado de Minas Gerais. Era tudo muito complicado, já que Sebastião mal se dera conta da existência das primeiras letras através das lições dadas pela comadre de seu pai, sua madrinha, ainda na infância. Depois disso, agarrou na enxada, onde ganhou a duras penas sua vidinha de homem do campo. Agora estava aposentado e morava no perímetro urbano. Nada mais.
Mas dava pra levar, até porque sua mulher, Felizbina, fazia jus ao nome que lembrava felicidade, acumulando algum rendimento com a costura para meninos e meninas. Mulher trabalhadora, conseguiu também, depois de muita luta, papelada pra-lá-e-pra-cá, um Beneficio da Previdência Social. Juntando tudo, dava até pra ter uma continha no Banco do Brasil, com direito a retirar talão de cheques. Claro, o titular da conta era o marido, Sebastião, já que negócio em banco, na época, ainda era assunto só pra homem. Mulher só na cozinha... ou então na máquina de costura.
Aliás, mulher servia também pra levar-trazer recado e tirar dinheiro no banco pro marido. Mas podia dar problema, gerar muita gargalhada nas rodinhas de praça e botequins na cidade e até virar Caso, vindo parar na página do jornal Cataguases, muitos anos depois, em 2008.
Sebastião, com muita dificuldade, escreveu um cheque de cinqüenta cruzeiros e pediu à esposa que fosse ao banco tirar o dinheiro. Era para pagar umas continhas da casa e deixar de reserva alguns trocadinhos pro fumo de rolo, palha, uma ou outra água-de-cana, coisinhas básicas. Felizbina, obediente, chegou ao caixa, mas teve o cheque devolvido pelo bancário, pois a assinatura não conferia; ela deveria pedir ao marido que assinasse da forma que constava no Cartão de Autógrafos da agência.
A mulher, que perdera boa parte da audição por conta dos anos de zic-zic da máquina de costura, imaginava que todos à sua volta eram também surdos e por isso falava muito alto:
É só na escrita do nome?, perguntou gritando. O bancário disse que sim e Feliz saiu à busca do marido para corrigir o erro. Demorou mais de duas horas para voltar, embora morasse bem perto da praça onde estava o banco. Com a agência quase fechando e lotada de clientes, bancários e usuários, entrou apavorada e falando alto:
- Nós custamos a ver o erro no cheque. Você devia ter me avisado que o Tião esqueceu de botar o Pinto lá atrás!

Na Cabeça

Partida rolando quente entre o Ribeiro Junqueira, de Leopoldina e o Ideal, da cidade de Recreio. Jogo no campo do Ribeiro. Destacados pela emissora local para fazer a cobertura, como narrador, o distraído e ansioso Gerson Costa, e como repórter de campo, Roberto Nairibe, um famoso radialista, conhecido por não perder nenhum lance, dentro ou fora das quatro linhas. Os trabalhos de radiodifusão tinham naquela tarde o patrocínio de uma famosa marca de cerveja que aqui nomino Arctica!
É muito comum nas transmissões do interior do país que os profissionais aproveitem todos os momentos possíveis para a veiculação de mensagens comerciais, gravadas, ou ao vivo. As gravadas são rodadas antes do início da partida, no intervalo entre os dois tempos e após o final do embate. Para veicular os comerciais ao vivo, o narrador e os repórteres destacados, aproveitam as saídas de bola, um córner, os momentos que antecedem a cobrança de uma falta, ou, como dizem alguns profissionais mais intelectualizados, os “hiatos” do jogo.
Mas esta sensacional tirada não se deu em nenhum desses momentos. A bola estava rolando plena no meio do campo quando o narrador Gerson Costa observou que o goleiro do Ideal estava caído, sem que o Juiz se desse conta de qualquer incidente. Havia acontecido alguma coisa, alguma agressão ao goleiro, mas fora do lance da bola.
Imediatamente, Gerson pediu informações a Roberto, do que havia ocorrido. Roberto informou que um irresponsável torcedor do Ribeiro Junqueira que estava atrás da meta do arqueiro o atingiu com uma garrafa na cabeça. O goleiro ferido sangrava muito e poderia, por conseqüência da ferida e do sol escaldante da tarde, ter uma convulsão.
Mas Celso não considerando nada disso, não perdeu tempo, aproveitou o episódio para faturar um comercialzinho:
-Tomara que seja da cerveja Arctica, deliciosa, refrescante, até passarim bebe!