quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Crônica/Tragédia Caipira

Alma em Pedaços
Narro aqui o que me foi contado pelo cidadão Ivo Pereira Barbosa, muito conhecido em Cataguases como Sarney, isso por conta do seu bigode bi-labial, do tipo que parte das ventas e quase lambe a borda do queixo. Mas esse Sarney, embora não seja maranhense, nem senador, é dono de uma prosa em que predomina o patético, do nascer ao deságüe do rio das histórias que conta. Vem comigo:
Pandareco era um humilde servidor público da Prefeitura de uma cidade próxima a Cataguases. Funcionário responsável pela coleta de lixo, trabalhava numa carroça puxada por uma besta, que em pouco tempo deixou de ser uma simples filha de jumento com égua, para se tornar a mulinha-amiga, mulinha-parceira, mulinha-irmã. Não exagero, por conta de sua inteligência, o muar, muito rapidamente, conquistou a simpatia e o coração do seu guia ao facilitar-lhe a execução das tarefas de rotina. Pandareco ficou dispensado até mesmo de segurar as rédeas, que permaneciam presas à lateral do assento da carroça. Ganhou liberdade de ação e tempo para adiantar o serviço saltando antes dos pontos de coleta. A bichinha, ao sentir a pressão da cela sobre o lombo já sabia que o seu dono estava de pé sobre o estribo e iria alçar vôo sobre a calçada; a ordem definitiva de parar vinha do balançar da carroça pra cima e pra baixo, seguido de um sonoro “Eeeiia!”. O comando de retomada de trecho vinha da simples expressão,“aamoo!”.
Assim iam os dois quase-irmãos pelas ruas da cidade, um pelo outro, cuidando da limpeza do município. A mulinha não contava com mais de cinco anos e se parecia com aquela que encontramos estampada no painel em azulejo da casada Nanzita, na avenida Astolfo Dutra. Lá, no painel em azulejo de Anísio o animal aparece altivo, orelhas em sentinela, transparecendo saúde e vivacidade.
A outra, companheira do Pandareco, de igual boniteza, conquistou a posição de titular da carroça depois que o Lerdeza, um burro velho, preguiçoso e viciado, morreu. A bestinha, ao assumir o cargo, já foi dando mostras de gostar de “enfrentar novos desafios” como se costuma dizer por aí, no mundo do trabalho. E pelo seu desempenho queria fazer história, superar o seu predecessor no ofício de puxar carroça de lixo da prefeitura. Não ganhou um, mas muitos nomes, idealizados alegremente pelo seu guia na rotina da faina, - Pitita, Bunita, Redonda, Dengosa - mas nenhum deles ficou em definitivo. Não houve tempo, pois veio a tragédia.
Pitita pernoitava num terreno público que o prefeito daquela cidade havia loteado, na perspectiva de transformá-lo num bairro popular. Um dos agraciados com a doação já iniciava a construção de sua nova morada e, para servir-se de água, fez um poço de mais ou menos cinco metros de profundidade. Numa tarde-noite de quinta-feira, Bunita, distraída no seu desjejum, sem perceber a existência do buraco foi arremessada ao fundo. Permaneceu ali, corpo dobrado, solitária, em desalinho, até Pandareco chegar, ao amanhecer. Redonda, já cansada de resistir por si mesma, entregue à sua própria sorte, só apresentava algum sinal de vida quando percebia, acima de sua cabeça e debaixo de um parco céu azul, a fisionomia de seu dono. Era o mundo que lhe restava. No entanto, apenas ensaiava uma reação, cujo gesto mais significativo - o que cortava o coração de Pandareco – era um breve repuxo na pata traseira direita, seguido de um frágil alento. Estava sem resistência, derrotada, no fundo do poço, incapacitada para o seu alegre exercício de puxar carroça.
O infortúnio do funcionário público e de sua companheira de labuta encheu o dia dos moradores da vizinhança que acorriam aos borbotões, ansiosos por assistir tudo de perto. Cada um tinha a sua opinião sobre a melhor estratégia de salvar o animal, mas nada de prático, nada que oferecesse a menor possibilidade de eficácia. E Pandareco, na sua humildade, ainda nutria alguma esperança...estava afeiçoado à mulinha:
- Ela tá viva, há de ter jeito!
Chamaram Chico-Laçador que conseguiu, depois de algumas tentativas, prendê-la pelo pescoço e pernas, mas logo em seguida avaliou que se a içassem pela corda poderiam acabar de matá-la, quebrando-lhe a coluna. E Dengosa, apresentava cada vez menos sopro de vida, só reagindo quando açodada pelo seu Dono-irmão:
- Agüenta, sua moleirona, tem eito, tem lixo pra catar!
Quando ouvia essas palavras de estímulo, ainda com a cabeça e pernas presas ao laço, Pitita abria os olhos anuviados, numa quase apagada esperança e voltava ao seu estado de desfalecimento. Pandareco, inusitado, se viu chorando pela primeira vez. Tirou a camisa pra limpar as lágrimas e se transformou em mais uma vítima da insensibilidade da turma que lhe deitou chalaça. O povo achou graça naquele homem abrindo o bué por conta de um bicho-carroceiro caído no poço. Ademais, ninguém nunca o tinha visto daquele jeito, sem a camisa, magricela, enrugado!
Pandareco estava curto da idéia por conta do ocorrido. Por outro lado, não era costume daquela gente buscar soluções dos problemas a partir do coletivo. De longe no tempo, avalio que, se houvesse vontade geral de livrar a burrinha do seu mal-destino, se todos cavassem em volta do poço – eram mais de 50 pessoas! – chegariam até o animal e, possivelmente, o salvariam.
Enfim, chegaram os homens do setor de Aterro e Desaterro da prefeitura e os da Ordem Estadual de Estradas de Rodagem, estes determinados a resolver de vez o problema. Apareceram por volta de quatro da tarde num carro amarelo e num caminhão-caçamba lotado de terra virgem.
Depois de escutar o curto e grosso argumento do homem de roupa caqui e boné na cabeça, - Não tem mais jeito, tá quase morta, vamos acabar com isso! – Pandareco baixou a cabeça, resignou-se, mas não quis assistir ao funeral. Liberado o local, o Mercedão fez a manobra, entrou de ré e posicionou-se.

(Ruído do motor erguendo a caçamba; derrama; portinhola traseira da caçamba socando várias vezes o caminhão e esgotando a terra. O ressoar das batidas ferro-a-ferro destoando do timbre grave - frio, abafado - para o médio - agressivo aos ouvidos, lancinante.)

Silêncio no entorno e no fundo do poço. Pandareco, a essa altura, já seguia pela estrada de São Manoel de Guaiaçu. Não viu o sacrifício e também ninguém nunca mais haveria de rir do seu incontrolável e pungente choro.

Um comentário:

  1. Pequeno, como bom narrador que é, seu texto flui e prende o leitor do início ao fim. Linguagem, construção frasal, vocabulário rico, dentre outras coisas, conquistam o leitor mais exigente.

    Destaco o parágrafo no qual se explicita a ausência de sentimento coletivo das pessoas. E não é que temos muitos burricos atolados no abismo de nossas vidas sem que consigamos pensar numa solução coletiva para o caso? Um abraço. Luiz Lopez

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