quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônica: A morte do Zé Sarney


O anúncio no rádio ficou por minha conta: “Comunicamos com pesar o falecimento de Ivo Pereira Barbosa, cujo sepultamento se dará hoje, dia 04 de junho de 2008, às 15 horas, no cemitério de Dona Euzébia. O féretro sairá da capela mortuária daquela cidade. A família enlutada agradece a sua presença e solidariedade”.

Tive que incluir no texto o apelido do finado: Zé Sarney. Os possíveis ouvintes da emissora jamais poderiam saber a quem se referia a Nota de Falecimento, se lá constasse apenas o nome de pia.

Ivo, o nosso Sarney, levava essa alcunha porque tinha um bigode parecido com o do senador lá de Brasília; daqueles que partem das ventas e quase lambem a borda do queixo. Foi também um contador de histórias, dono de uma prosa onde predominava o patético, do nascer ao desaguar no nosso imaginário.

Mas não veio do Maranhão, nunca passou por perto de um Congresso ou Academia de Letras e tampouco sabia lá o que vem a ser um clã nordestino. Excluído, jamais chegaria a Presidente da República! Nunca enricou e diferente do que ocorrerá com o político, morreu sozinho no pronto socorro municipal; sua família não mereceu do Estado nem mesmo uma informação mais respeitosa sobre o que motivou a sua morte - na Certidão de Óbito consta apenas que faleceu em conseqüência de “Causa Indeterminada”. Indignação!

Nasceu na cidade de Manhuaçu há cinqüenta e um anos atrás, filho de João Pereira Barbosa e Alícia da Silva Barbosa. Passou boa parte de sua existência em Dona Euzébia. Lá, mantinha alguns familiares e um amigo carroceiro de apelido engraçado: Pandareco. De lá guardava boas e más lembranças. Entre as boas, falava das festas de casamento que freqüentava ainda na juventude; já a recordação da perda da casa onde morava mexia nos seus nervos e anuviava-lhe os olhos. Para lá voltou carregado ao reencontro com a mãe, de quem confessava sentir muita saudade. Seu pai, também falecido, era viajante.

Há um bom tempo morava em Cataguases. Costumava marcar presença nas rodas de conversa dos taxistas, funcionários de sacolões e frentistas dos postos de gasolina. Amigo e assessor do José Almir, programador musical da feira de artesanato, gastava lá as suas manhãs de domingo. O conterrâneo, Ildeu, era seu porto seguro, dele recebia e considerava bons conselhos.
Com a sua parca renda de aposentado pelo INSS, conseguiu organizar com gosto sua casa: dependurou na parede da sala alguns quadros primitivos, esticou tapete no chão e comprou um potente aparelho de som. Na estante, ostentava orgulhoso uma montagem fotográfica onde aparece em meio corpo portando a faixa presidencial! Compartilhava a audição de suas músicas sertanejas e românticas com os vizinhos e os passantes do final da Avenida Astolfo Dutra, onde morava. Vivia sozinho, mas vaidoso.

Caminhou comigo até a última primavera, ocasião em que revelou acreditar na sua popularidade e admiração pública. Previa inocente e engraçado no trocar das pernas: “Quando eu morrer, Cataguases vai decretar feriado nacional”!

Às vezes, dialogava com criaturas que nós, seres normais e adaptados à vida presente, não conseguíamos vislumbrar. Gostava de chuva - por várias vezes o flagrei falando sozinho, na porta de casa, apontando o dedo para o sol poente; chamava as águas que na curva do céu, ainda nuvens, apareciam-lhe feito “rabos de galo”.

Por razões que fogem ao nosso entendimento, deixou tudo de lado para enfrentar o que dizia temer: a morte. Decidido, Jejuou do arroz-com-feijão e por muitos dias limitou seu alimento ao extrato de cevada e lúpulo. Vagou desvairado pela cidade. Na tontura de suas horas, desconsiderou os limites do corpo, como se um espírito atormentado não precisasse também de um “cavalo” pra se manifestar!

Perdeu a batalha no último três de junho, terça-feira. Embora fosse conhecido, o féretro foi acompanhado por não mais do que vinte pessoas. Imagino que muitos, ao tomarem conhecimento de seu passamento se apiedaram. Outros, como bem disse o poeta Manuel Bandeira, “estavam todos voltados para a vida, absortos na vida, confiantes na vida” e não se deram conta da fatalidade.

Nas últimas palavras, dou o testemunho da retidão e honestidade do meu amigo. Ivo tinha nome limpo na praça, fazia questão de pagar em dia as suas contas. A propósito, antes de entrar em agonia, enviou-me, através de sua irmã, certa quantia para que em seu nome eu liquidasse uma prestação numa grande loja. Com a pressão em queda livre, partiu.

Não paguei o carnê. Devolvi o dinheiro à família enlutada e às voltas com as despesas do funeral. Que seus pretensos credores, se tiverem coragem e o Código de Endereçamento Postal, encaminhem cartinhas de cobrança ao Paraíso, aos cuidados de Deus. O endereço é Rua dos Pobres pelo Espírito, onde Zé Sarney, liberto, foi ser feliz.

Um comentário:

  1. Pequeno, não conheci o Sarney, mas você me fez gostar dele com o seu belo texto. Sem dúvida, é uma homenagem das mais singelas feita a uma pessoa simples, um amigo.
    Aproveitando o belo final do seu texto, gostaria que você achasse um jeito de encaminhar o meu comentário não só ao seu blog, como também à “Rua dos Pobres pelo Espírito, onde Zé Sarney, liberto, foi ser feliz”, uma vez que você é um escritor muito “safo”.
    Dê um abraço aí em Deus, Sarney, pede a ele pra dar uma olhada de vez em quando aqui pra baixo.

    Zeca Junqueira

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