quinta-feira, 26 de abril de 2007

Crônica

Ilustação: Altamir Soares

A MUCAMA DA CATARINA (* )

Ao escritor josé Antônio Pereira que sugeriu o título desta crônica

Quem obrou aquela mulher que fica ali, im(p)une, exibindo as suas partes no espaço público, indiferente ao curioso olhar do povo?
Eu, pessoalmente, acho que ela seja lavra de alguma seguidora de Tarsila, que lá nos idos de mil novecentos e nada aportou aqui no Brasil, pintando quadros e namorando muita gente; Tarsila tornou-se famosa em São Paulo nos anos vinte. Era rica, bem de vida e artista.
Mas, eu trato aqui é daquela negra, retinta, que está lá, sentada no jardim da praça, desafiando todos nós. Sim, porque já se sabe que ela não trabalha em fábrica ou casa de família, não entrega almoço, não cuida de velhinhas e também não pede auxílio a ninguém. Banha-se de lua, sol, sereno e chuva e quando começa a amarelecer devido à ação do tempo, dá-se ao luxo de receber borrifos de tintura e massagem de dois homens, contratados pela Companhia, cujos donos – veja só! - gastam dinheiro para enegrecer sua pele!
O imaginário popular reza que a africana é protegida da Catarina, uma madame do tempo antigo que defendia a vida hedonista. Catarina era relacionada, vivia cercada de gente branca e bacana – inclusive de um coronel; destacava-se das outras mulheres da cidade pela sua elegância estrangeira, que veio de longe, da velha Europa; morava naquelas cercanias acompanhada de diversas mocinhas, num ambiente de espalhafatosa alegria. Quanto ao hedonismo, ninguém, até hoje, sabe muito bem o que vem a ser.
Voltando ao meu assunto, o certo é que a Chica da Silva contrariou a lógica da história, herdando terra em espaço nobre da cidade, por referendo, isso, anos depois de ter aportado aqui em Cataguases, quando apenas alguns poucos tinham dotes e patentes garantidas pelo governo. Esses poucos eram donos das terras, do comércio e da vontade do povo. Não subscreviam diplomas, mas ensinavam disciplina e moral aos seus mandados; dominavam bem as quatro operações básicas de matemática, mas nunca gostaram de dividir.
No que diz respeito à nossa plebéia, outro dia uma pretensa madame, indignada, reagiu à sua audácia ensaiando denunciá-la por vadiagem à prefeitura, mas declinou de seu propósito, logo que soube que a mucama estava ali sob as graças do povo e que o Código de Posturas do Município, apesar de ainda vigor, era um documento anacrônico, em desuso, ultrapassado, fora de moda.
E a negrinha continua lá, sentada, despudoradamente, pés juntos, ancas largas, distraindo as crianças que abarca em seu largo colo, ou suporta brincando dependuradas no comprido pescoço. Não reclama.
Não há quem possa com a beleza da quilombola! Quebra preconceitos e instiga os que se prostram (des)importantes no banco à sua frente, mostrando os seios e revolvendo suas libidos; exibe-lhes também um agudo e excêntrico coque.
Fingindo alheamento, espreita os que seguem no rumo da vila. Possivelmente, futuros amantes.

( * ) Sobre escultura de Sônia Ibling exposta permanentemente na Chácara Dona Catarina, em Cataguases. Texto publicado no livro A Casa da Rua Alferes e Outras Crônicas, Editora Cataletras. R$ 15.

2 comentários:

  1. Belíssima crônica meu companheiro Pequeno. E eu queria complementar a descrição da negrinha da Chácara - a imponente Mucama da Catarina - destacando aqui que, além das regalias e atributos já mencionados por você, ela ainda traz consigo a FORÇA e LUZ... Neste seu espaço vitalício ela reina soberana ou seja, TÁ COM TUDO E TÁ PROSA...
    abração do
    Fernando Batista dos Santos - "FERNANBAS"

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  2. Estarei sempre olhando por aqui tio. abraço!

    Fabio

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