segunda-feira, 17 de maio de 2010

Um Poema - Ronaldo Cagiano

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ÚLTIMO POEMA PARA ISABELA NARDONI

A morte chegou pelo elevador
e, num março enfumaçado,
com seus guantes de aço
e suas garras de bile
colheu-te na imensidão ferruginosa
das sombras.
Com o avassaladora condenação das Parcas
- apartada toda a misericórdia -
a deselegância furibunda de um Talião
irrompeu atônita
enquanto calçavas as meias de seda
de seus sonhos.

Feito Dâmocles,
a Inolvidável chegou intimorata
empunhando a espada assassina
que teceu a noite definitiva
sem defesa ou recursos.

Apareceu do nada
(ou foi ruminada no pântano escabroso de um monstro?)
e como um decreto inclemente de Cambises
sentenciou sua injustiça manifesta

Sem luva nas mãos
sem identidade
mas frenética e irredutível
seus olhos arregalados e frios de fera enjaulada
interditaram os anjos da menina
decepando a haste frágil
de um jardim
onde dormitavam bonecas e velocípedes.

Indesejada e inexorável,
cruzou o Letes
com a velocidade desumana e cangaceira
de um zéfiro

veio para ti
pelas mãos de uma imerecida paternidade
navegando no rio ácido de um sangue
que não é doce como o seu.

Ela não se escondeu de você
pequena flor arrancada a contragosto
do inefável canteiro de pérolas,
mas ao brotar de um jardim sinistro
e cavalgando o dorso do horror
fechou-te as pálpebras
numa enxurrada fúnebre
lançando-te no vale de ossos
no exílio da pátria de jazigos.

Testemunha do silêncio e da lonjura dos dias,
experimentas o compulsório breu
do invisível
que se debruçou tão cedo
sobre o seu calendário imberbe.

Habitante do etéreo,
pesa sobre teus olhos frágeis
o chumbo de uma noite imprevisível
e a bomba alucinada e insone
que impingiu-lhe as mãos criminosas
agora marcam na tela desértica e grave
de teu quarto - sem borboletas nem sorrisos -
a insone obra
da tragédia imperdoável.

Um comentário:

  1. Francisco Marcelo Cabral19 de maio de 2010 às 04:58

    Ronaldo Cagiano expele seu poema de indignado sofrimento como uma
    > catarse perante o horror inexplicável.
    > Participamos comovidamente desse horror.
    > e o poema se trasmuta em nênia e epitáfio
    >
    > Francisco Marcelo Cabral

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